A verdade com aparência de mentira em O Rinoceronte, de Eugène Ionesco


Antes que possamos tratar da verdade com aparência de mentira em O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, conforme é o nosso objetivo, apresentaremos aos nossos leitores esse autor tão peculiar. Ionesco, que se consagrou como autor de peças teatrais, passou parte de sua vida desprezando a arte dramática, por tratar-se, segundo dizia, de uma mentira. Para ele, já se precisa suportar mentiras suficientes na vida para que ainda as suportemos no teatro. Porém, parece que, ainda que tardiamente, o dramaturgo descobriu que pode haver verdades profundas em aparentes mentiras. O seu trabalho com os textos dramatúrgicos surgiu a partir de reflexões acerca do quanto a linguagem verbal pode ser vazia de significado. Percebeu então, que esse non sens das palavras expressa a falta de um sentido maior para a própria existência. Daí nascem textos dramáticos nos quais o absurdo prevalece, levando-nos, por meio de certo estranhamento frente ao que se apresenta como uma aberração, a refletir sobre a existência.


Eugène Ionesco foi, até mesmo, acusado de pequeno burguês e apolítico, por causa de suas peças, passando-se a falar em antiteatro. Bornheim refere-se a esse autor como sendo uma espécie de destruidor do teatro: "Todo espectador tem o sagrado direito de protestar contra a mistificação: quando vai ao teatro, quer ser atendido nessa função específica que se propôs como espectador, isto é, quer ver teatro. A rebelião de Ionesco não admite tal direito; ele não gosta das mentalidades que aceitam as coisas como pacíficas. Antes de mais nada, Ionesco é um destruidor — apenas um destruidor. E assim, coerente com essa premissa, não escreve teatro, mas um antiteatro; escreve antipeças, antidramas. Uma das novidades de nossa época e de sua sempre surpreendente técnica está na fabricação de brinquedos. Pois Ionesco trata o teatro como se fosse um brinquedo; manuseia-o a seu bel-prazer e, como toda criança, termina por virá-lo ao avesso. Desmonta-o, quer saber qual o seu segredo." (BORNHEIM, 1969, p. 115)

A principal razão das críticas recebidas pelo autor era o fato de que ele não tratava das questões sociais. Foi chamado de inimigo do realismo no teatro. Entretanto, ao abordar o absurdo existencial foi capaz de mostrar verdades sociais de forma bem mais profunda e tocante do que aqueles que se diziam realistas. Ionesco defendeu-se, ainda, da acusação de antirrealista e quanto ao fato de pensar a linguagem como algo impossível afirmando que o próprio ato de criar e encenar as suas peças é inconciliável com tal atitude, explicando que sua observação era quanto à dificuldade, e não quanto à impossibilidade, da comunicação.

Todavia, a principal resposta às críticas não foi dada por ele mesmo diretamente, mas por suas próprias peças, que demonstraram o quanto a possibilidade de enxergar os dramas existenciais nos torna capazes de compreender a sociedade em que vivemos, já que ela é uma extensão de nós mesmos: "Nenhuma sociedade foi capaz de acabar com a tristeza humana, nenhum sistema político poderá livrar-nos da agonia de viver, de nosso medo da morte, de nossa sede do absoluto; é a condição humana que orienta a condição social, e não vice-versa." (IONESCO, apud ESSLIN, 1968, p. 114/115)

Foi dessa forma que Ionesco traçou, em suas obras, um perfil da sociedade do período da Segunda Guerra Mundial, bem como do pós-guerra. Em 1959, trouxe à cena uma das obras mais polêmicas e a que o tornaria conhecido mundialmente: Rinocerontes, peça em três atos na qual o escritor romeno lida com a situação de selvageria do ser humano submetido às ideologias totalitárias. Embora trate de uma metáfora do regime nazista, a obra é tão atual que pode ser lida como símbolo de qualquer drama existencial que animalize ou reifique o ser humano.

A história se passa em uma cidade na qual, certo dia, as pessoas começam a se transformar em rinoceronte. Ao final da peça, somente uma personagem não se converte em tal criatura, prometendo a si mesma jamais ceder, jamais abrir mão de sua humanidade. Em um ambiente onírico, decorrente da aceitação das “verdades” nazistas, o autor desmoraliza certas ideias e concepções de mundo defendidas na Europa no período entre guerras, transportando o espectador através da sequência de metamorfoses mencionadas acima.

A alegoria presente no texto não deixa dúvidas: trata-se de um surto de “rinocerontite” que acomete a população da cidade que, gradativamente e de forma inexplicável, se transforma nessas bestas colossais de chifres afiados e providas de couraças protetoras, além de uma força extraordinária, capazes de agir sem perda de tempo, sem divagações filosóficas ou qualquer tipo de remorso, destruindo tudo e todos em seu caminho. Diante de todas essas transformações, um homem resiste solitário: esse homem é Berénger.

Ionesco constrói em O rinoceronte uma tese antinazista, mas sua dramaticidade vai além da simples apologia humanitária. O autor cria um impasse existencial do qual seu protagonista, Berénger, é a peça chave: viver como homem num mundo de rinocerontes ou ceder e abrir mão de sua humanidade. Aqui se observa claramente a “verdade” social por trás da “mentira” dramatúrgica. O autor inverte a noção de humanidade a fim de levar o espectador a pensar, por meio do estranhamento causado pela peça, sob uma ótica inusitada, a dos próprios rinocerontes, e o conflito reside justamente na constatação do quanto pode ser ilógico e irracional o mundo em que vivemos. O texto dramático proposto por Ionesco, enquadrado por Martin Esslin (1968) no chamado teatro do absurdo, não se limita a discutir os temas sócio-existenciais, mas tende a subvertê-los, subvertendo a própria estrutura dramática.

O que chama a atenção é o fato de Berénger não ser capaz, no final da peça, de transformar-se em rinoceronte. Porém, quando se pensa em uma afirmação sua ao amigo Jean, no início do texto, percebemos que se trata de alguém a quem se poderia chamar de desajustado, alguém que não consegue viver de acordo com os padrões estabelecidos pela sociedade. Ao ser interpelado pelo amigo sobre a sua falta de vontade Berénger responde: “Ora, vontade! Nem todo mundo tem a sua. Eu por exemplo não consigo me habituar. Não, não me habituo com a vida.” Essa inabilidade para se adaptar a esse mundo explica a incapacidade de se transformar em rinoceronte ao final da peça.

Além de se poder perceber a verdade social que a metáfora encerra, pode-se observar a expressão de uma outra verdade que é anterior à social, no âmbito do inconsciente coletivo das pessoas envolvidas pelas ideias nazistas. Jung, criador da teoria do inconsciente coletivo, em sua obra Aspectos do drama contemporâneo, fala do nazismo como a expressão de uma patologia coletiva do povo alemão. Como as coisas estão sempre interligadas, da mesma forma que, como afirma Ionesco, “a condição humana orienta a condição social”, “a psicopatologia de massa tem sua origem na psicopatologia individual” (JUNG, 1990, p. 39). A base da teoria de Jung era a sua proposta teórica sobre o inconsciente coletivo, mais cultural que o inconsciente sexual de Sigmund Freud. Nesse sentido, o Nazismo lhe apresentou um fenômeno social que poderia ser tomado como a comprovação final de suas proposições. Seguindo esse raciocínio, concluímos que há no inconsciente, poder político, além de conteúdos culturais, antropológicos e mitológicos, capazes de levar aos trambolhões não só todo um povo, mas todo um continente, e por pouco não todo o mundo. Para Jung, ocorreu uma tendência destrutiva do inconsciente que foi ao encontro de uma tendência destrutiva alemã à massificação: "Os arquétipos que pude observar exprimiam primitividade, violência e crueldade. Como vi tais casos em demasia, concentrei minha atenção no curioso estado mental que predominava então na .Alemanha. Entretanto, só consegui distinguir sinais de depressão e grande agitação que, na verdade, não emplacaram minhas inquietações. (…) O ataque tempestuoso de forças arcaicas foi quase universal. A principal diferença residia na própria mentalidade alemã que, em razão de sua extraordinária tendência para a massificação, se mostrou mais propícia." (JUNG, 1990, p. 40/41)

Como o próprio Ionesco declarou, sua obra O rinoceronte refere-se ao nazismo. Traçando um paralelo entre a teoria junguiana e certos aspectos dessa peça é possível observar, nos diálogos das personagens, algo acontecendo sem que elas percebessem, até que, pegas de surpresa, deparam-se com as feras destruidoras. O autor mostra, em O rinoceronte, o que pode ser entendido como uma percepção inconsciente, por parte das personagens, de que alguma coisa estava por acontecer quando, em algumas passagens da obra os sons dos rinocerontes se fazem ouvir quase sem a consciência das pessoas, que continuam com suas conversas sem sentido. Esse fato demonstra que havia algo “por baixo dos panos”, sobre o qual as personagens não tinham consciência: "JEAN (a Berenger e quase gritando para se fazer ouvir, apesar dos ruídos que ele não percebe conscientemente)
Não, é verdade, eu não fui convidado. Não me deram esta honra... De todo jeito, posso assegurar que mesmo que tivesse sido convidado, não teria ido, porque. . . (Os ruídos aumentaram muito.) O que está acontecendo? (Os ruídos do galope de um animal potente e pesado estão bem próximos, muito acelerados; ouve-se o seu bufar.) Mas o que é que se passa?" (IONESCO, 1976, p. 19)

“De fato, as personagens de Ionesco são destituídas de dimensão psíquica (…) não passam de marionetes vazias de interioridade (…)” (BORNHEIM, 1969, p. 118). Outro sinal da inconsciência dessas personagens é uma tendência a falas repetidas que se percebe durante todo o decorrer da obra, mas que fica muito mais evidente no início, durante os diálogos sem sentido entre Berénger e Jean e entre o Lógico e o Senhor Idoso. Esses diálogos se cruzam todo o tempo, dando uma sensação maior do absurdo e enfatizando ainda mais as repetições das falas das personagens:

"(…) Berénger descia simplesmente um pouco a cabeça por causa da poeira, um pouco sonolento, sem dizer nada; faz simplesmente uma careta.) Esta agora!

JEAN (desviando também um pouco a cabeça, mas com
vivacidade) Esta agora! (Espirra.)

A DONA DE CASA (No meio do palco, mas virada para a esquerda; as provisões estão espalhadas pelo chão, em volta dela.) Esta agora! (Espirra.)

O SENHOR IDOSO, O MERCEEIRO E A MERCEEIRA (no fundo, reabrindo a porta da envidraçada mercearia, que o senhor idoso tinha fechado) Esta agora!

JEAN Esta agora! (A Bérenger) Você viu? (Os ruídos feitos pelo rinoceronte e seu barrido são ouvidos muito ao longe. As pessoas, de pé, seguem ainda com o olhar o animal, menos Bérenger, sentado, sempre apático.)

TODOS (menos Bérenger) Esta agora! (op cit, p. 23)"


É necessário compreender que cada personagem da obra representa, em certa medida, pequenas coletividades que compõem um todo. Há o comerciante, a trabalhadora (garçonete), a dona de casa, o idoso, etc. Portanto, cada inconsciência percebida nas personagens refere-se, na verdade a uma inconsciência coletiva. Outra questão que parece de bastante relevância é a metamorfose da personagem Dudard. Este, após sentir-se rejeitado por Daisy, decide transforma-se em rinoceronte. Berénger fica desolado por não conseguir fazer nada sobre o assunto, perguntando a Daisy por que não tomou nenhuma atitude, já que tinha esse poder, já que era o objeto do amor de Dudard. Nessa passagem também é possível observar certa inconsciência, pois há, evidentemente, a busca por um tipo de compensação da própria frustração por parte de Dudard, representando a busca de compensação de uma frustração do povo alemão. Sobre esse mecanismo psíquico Jung diz: (…) Em geral, essas forças podem ser entendidas como compensação. Quando essa espécie de movimento compensatório do inconsciente não consegue ser absorvido pela consciência individual, pode gerar uma neurose ou até uma psicose, e o mesmo vale para o coletivo. É evidente que para se produzir um movimento compensatório desse tipo é preciso que algo esteja fora de ordem na atitude consciente; algo deve estar invertido ou fora de proporções, pois somente uma consciência desequilibrada pode provocar um movimento contrário no inconsciente. Como os senhores bem sabem, inúmeras coisas não estavam em ordem naquela época e as opiniões a esse respeito eram extremamente confusas. Na verdade, a opinião correta só pode ser avaliada ex effectu, ou seja, só podemos verificar as faltas na consciência de nossa época, observando o tipo de reação provocada no inconsciente. (JUNG, 1990, p. 40/41)

Como se pôde ver anteriormente, Berénger é um sujeito desajustado, que não se habitua à vida. Isso se deve ao fato de que ele representa a minoria daquele contexto social que conseguia ter um pouco de consciência. Como a aquisição de consciência, tanto social quanto individual, é um processo irreversível, Berénger não é capaz, como os outros, de transformar-se em rinoceronte. Decide então, defender a sua humanidade até o fim.

É natural que Ionesco se utilizasse da falta de sentido da linguagem para demonstrar a sociedade absurda em que vivia, sendo esta, por sua vez, reflexo de fatores da psique coletiva. Se o social reflete o individual, podemos dizer que a linguagem, que possui um caráter extremamente social, pode ser reflexo de algo que é anterior a ela, ou seja, que pertence ao mundo mítico do inconsciente. Assim, Eugène Ionesco demonstra que, através das mentiras encenadas no palco, podemos falar das mais profundas e desconhecidas verdades. Eis um grande desafio aos apreciadores de peças teatrais: encontrar a verdade com aparência de mentira em O Rinoceronte, de Eugène Ionesco.

REFERÊNCIAS
BORNHEIM, Gerd A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1969.
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
IONESCO, Eugène. O rinoceronte. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1990.

Nenhum comentário:

Postar um comentário