Pequod- Autor: Vitor Ramil -Editora L&PM -Ano: 1995 - Número de páginas: 120 - Skoob
O que existe de verdadeiro na imagem que possuímos de nós mesmos? Assim como é difícil responder a essa pergunta, também o é responder a questões referentes à arte produzida no nosso tempo. Essa dificuldade não é privilégio do ser atual. Houve equívocos em todos os tempos. Isso pode ser facilmente comprovado se pensarmos que Kafka, em sua época, foi considerado um excêntrico, ou que mestres da pintura como Van Gogh e Gauguin tiveram suas telas valorizadas somente depois da morte, levando uma vida de privações.
Da mesma forma, não podemos, hoje, estabelecer de maneira definitiva a validade artística das obras de autores atuais, como Vitor Ramil, pois futuramente, tudo o que for dito agora, poderá ser negado. Entretanto, podemos tentar descobrir o valor de uma obra como Pequod, e entendê-la melhor, se compararmos com obras que permaneceram e se consagraram. É evidente que cada tempo produz a sua arte. Mas está claro, também, que há algo de comum dialogando em tudo que é produzido pelo homem em todos os tempos. Há elementos, como os mitos, por exemplo, que fazem parte do inconsciente coletivo da humanidade e nos falam de verdades interiores com as quais perdemos o contato e das quais necessitamos para que mantenhamos o equilíbrio interior. O que existe de diferente entre a arte produzida nos diversos períodos é o contexto em que foi criada, pois um determinado elemento arquetípico será comum a todos os homens, mas será expresso de acordo com a visão de mundo e os padrões de comportamento de cada época. Existem, portanto, fatores que são universais e outros que são sociais em uma obra de arte. Ambos têm sua importância, mas o que faz com que uma obra permaneça é o que ela possui de universal, aquilo que independe do tempo, do espaço e dos padrões sociais vigentes.
O pintor surrealista Salvador Dalí, em 1939, encontrou-se com Freud, que estava exilado em Londres, para mostrar ao psicanalista seu quadro A metamorfose deNarciso. Freud observou a artificialidade do quadro, já que tentava forjar, de forma artística, a realidade do inconsciente. O comentário do médico foi: “Não é o inconsciente o que eu vejo em suas pinturas, e sim o consciente”. Isso deixa claro que há duas “vontades” do artista agindo sobre a obra, uma consciente e a outra inconsciente. Freud não poderia psicanalisar o quadro do ponto de vista do mito de Narciso porque os autores surrealistas recorrem a métodos e temas retirados da psicanálise para dar a seus trabalhos a aparência do inconsciente; mas poderia identificar o que foi “dito” pelo pintor inconscientemente. Nesse jogo entre a vontade consciente e a inconsciente do artista pode-se identificar uma relação entre a primeira com os elementos sociais, externos, e a segunda com os elementos universais, arquetípicos que influenciam a obra. A literatura, como as outras artes, também possui essa duplicidade; também sofre os reflexos das vontades consciente e inconsciente do autor. Além disso, há as projeções de imagens inconscientes do leitor na obra. Assim como em A metamorfose de Narciso vemos uma imagem que pode se tornar outra, nas obras literárias encontramos símbolos que nos levam além do significado mais evidente.
É transcendendo esse significado mais evidente e superficial que conseguimos encontrar um significado maior, um sentido para a vida. Da mesma forma que ao escrever uma obra literária o autor expressa aspectos do inconsciente, o leitor busca identificar no texto literário esses aspectos, dando, assim, um significado à vida.
Pequod, de Vitor Ramil, apesar de possuir uma estrutura absolutamente inovadora, é um texto repleto de símbolos e elementos arquetípicos que podem ser encontrados em outras obras desde as origens da literatura. Como os demais escritores, Ramil expressa-se de acordo com o seu tempo, entretanto, o que existe “por trás” do texto é universal. O autor de Pequod, ao apresentar-nos uma estrutura complexa, que exige um leitor mais maduro, atende a um anseio do homem atual, acostumado aos desafios da vida moderna e angustiado com a falta de respostas para questões existenciais e, ao mesmo tempo, dialoga com textos de outras épocas, através dos elementos universais que possuem em comum: mitos e arquétipos presentes no inconsciente coletivo da humanidade. Essa interdiscursividade acontece tanto em um nível consciente, quanto inconsciente, pois percebe-se uma intenção de estabelecer esse diálogo com Moby Dick e com textos da Bíblia Sagrada, não acontecendo o mesmo com outras obras e com alguns mitos com os quais, embora sem o intuito, ainda assim, Pequod comunica-se. Isso é o que faz com que se encontre significado no texto de Vitor Ramil. Se a intertextualidade faz o texto significativo, não o faz original, pois uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.
Um dos temas presentes em diversas obras no decorrer dos séculos é o da luta do homem contra a natureza, na tentativa de dominá-la, simbolizando a luta arquetípica para dominar a sua própria natureza instintiva. Em várias obras essa luta se dá em ambiente marítimo, o que não acontece por acaso, pois o mar é um elemento de incontestável valor simbólico, representativo da vida e da morte. Da vida porque é na água que ela começa; da morte porque, solvente universal, a água tudo dissolve. Elemento de purificação, a água, através do batismo, também pode simbolizar a transformação do homem em um ser melhor.
Essa luta arquetípica aparece em obras como a Odisseia, de Homero; a Bíblia Sagrada; A divina comédia, de Dante; Moby Dick, de Herman Melville; Os trabalhadores do mar, de Vitor Hugo e O velho e o mar, de Ernest Hemingway. Em todas elas encontramos alguma relação, intencional ou não, com Pequod. Em cada uma das obras referidas percebemos a tentativa do homem de resolver essas questões de luta interna de acordo com as crenças e a visão de mundo vigentes na época. O ser projeta no mundo seus conflitos internos, tentando resolvê-los em batalhas contra a natureza.
Em Odisseia — século VII a.C. — percebemos uma humanidade intelectual e emocionalmente imatura. O homem, de forma infantil, tenta encontrar explicações para os fenômenos da natureza através de seres fantásticos, resolve seus conflitos projetando-os nas guerras entre os deuses. Toda a angústia existencial de Ulisses resume-se em encontrar ou não o caminho de volta para Ítaca. Aí nos deparamos com um reflexo do “Mito da Caverna”, de Platão, segundo o qual o homem, originário de um plano ideal e vivendo em um plano real, sente a angústia de uma vaga recordação de suas origens. A questão é resolvida com a volta de Ulisses a Ítaca.
A Bíblia Sagrada, na história de Jonas e a baleia, apresenta-nos uma humanidade que, embora ainda imatura, já superou a crença em deuses que controlam os fenômenos da natureza, porém, acredita em um Deus punitivo, um Pai severo. Aí também observamos a luta do homem contra a natureza, representada pela baleia que engole Jonas. Da mesma forma que a angústia existencial do homem, na Odisseia, foi projetada na busca de Ítaca, aqui a crise do ser encontra a sua concretização no empenho de Jonas em conseguir o perdão de Deus. Assim se equaciona o conflito interno do homem da época: ser temente a Deus é igual a ser feliz.
Dando-se um salto de alguns séculos na história encontramos uma humanidade mais madura. A divina comédia— 1321 — demonstra-nos que o homem dessa época já era capaz de interiorizar os seus conflitos, embora ainda necessitasse de projeções. Dante criou uma viagem que começou no Inferno, passou pelo Purgatório, terminando no Céu, para representar as dificuldades pelas quais passava e a esperança que tinha de uma recompensa. Para Dante os conflitos internos eram resolvidos com o castigo de seus adversários e uma convivência ditosa com Beatriz no Céu. Embora ele tenha internalizado seus conflitos, ainda assim, projetou-os em fatos do mundo externo, trazendo-os para dentro de si mesmo para que pudesse resolvê-los.
Um pouco mais adiante, duas outras obras mostraram a mesma luta arquetípica, porém com abordagens diferentes. Moby Dick — 1851 — e Os trabalhadores do mar —1866 — também possuem seres que lutam contra forças da natureza. Hugo cria um personagem que representa o bom selvagem e, como é comum nos heróis românticos, possui uma força de caráter inabalável, além de grande força física e muita inteligência. Somando suas qualidades ele vence, quando em confronto com a natureza, todas as batalhas. Enfrenta a fúria do mar, a fome a sede e, até mesmo, uma lula imensa que quase o devora. Entretanto, é derrotado por uma outra força da natureza: o amor. Rejeitado pela mulher amada, o herói suicida-se. O romance de Melville nos oferece um ser igualmente derrotado, porém sem a nobreza de sentimentos do personagem de Hugo. Acab, protagonista de Moby Dick, é um homem cujo único interesse é vingar-se do animal que o mutilou, simbolizando o homem moralmente mutilado pela vida, que se torna ressentido e infeliz. No romance de Hugo, a angústia da existência é projetada na busca pelo amor; no de Melville, tal sentimento é identificado na perseguição a Moby Dick. Santiago, protagonista de O velho e o mar — 1952 — também é derrotado pela natureza. A diferença é que suas angústias são projetadas em algo mais simples, pois sua luta é pela sobrevivência, pelo sustento.
Pequod — 1999 — embora também trate de uma batalha arquetípica para controlar a natureza interna do ser, não faz projeções em questões externas. O seu principal conflito resume-se em "manter sob controle a impossibilidade de controlar a vida". Assim como Acab, de Moby Dick, Ahab é um homem mutilado, mas o que lhe falta não é um pedaço do corpo, e sim da alma.
Ahab é um homem de muitos conflitos e um deles é a sua dificuldade de aceitar aspectos de sua anima, componente feminino da personalidade do homem, mas ao mesmo tempo a imagem do ser feminino que este de modo geral traz em si; em outras palavras, o arquétipo do feminino. Podemos observar em vários momentos a dificuldade que Ahab encontra para lidar com essa parte de sua natureza. Na passagem em que ele brinca com o filho e, subitamente, irrita-se quando o menino o derruba, percebemos a oscilação do humor de Ahab, o que vem a ser uma confirmação de seus limites quanto ao feminino. Os homens que têm dificuldade para integrarem suas animas à personalidade, geralmente apresentam crises repentinas de mau humor, justificadas por uma postura destrutiva que esses aspectos do ser podem assumir em tais casos. Dessa forma, a anima equivale a uma bruxa que pode lançar feitiços de desalento e irritabilidade ou depressão. Como as sereias gregas, ou a Lorelei alemã, a anima pode induzir o homem à destruição. O comportamento de Ahab faz-nos pensar em uma versão masculina do mito de Lilith, representação destrutiva da anima no inconsciente coletivo da humanidade. Nas primeiras versões da Bíblia, não traduzidas para o português, Lilith teria sido a primeira mulher de Adão. Ao contrário de Eva, que fora feita de um pedaço da costela do homem, Lilith tinha sua origem no mesmo barro do qual fora feito seu parceiro, sendo, portanto, igual a ele e não uma “cria” sua. Diz o mito que, durante o ato sexual, Lilith pediu a Adão que a deixasse ficar por cima. Ele ignorou o pedido, irritando-a e fazendo com que ela o abandonasse, indo viver isolada às margens do Mar Vermelho para cuidar de suas cobras e escorpiões. O mito de Lilith possui várias versões em todos os tempos e civilizações. Um exemplo disso é o monstro Lâmia, da mitologia grega. Revoltada com Hera por matar os filhos que tivera com Zeus, a fera tornou-se uma devoradora de crianças, negando assim, um aspecto importante do feminino. No mito de Lilith percebe-se o que aconteceu no interior de Ahab. Não dando liberdade de expressão para sua anima, ele fez com que esse aspecto de sua psique, recolhido ao inconsciente, assumisse uma forma destrutiva. Isso fez com Ahab se isolasse do mundo, como Lilith no Mar Vermelho, e, como ela cuidava de suas cobras e escorpiões, ele cuidava de suas aranhas. Lilith lutava contra Adão, um ser masculino; Ahab luta contra sua anima, um ser arquetípico feminino. Talvez a origem dessa luta interior do personagem de Pequod esteja em um conflito entre seus pais, que aparece em alguns momentos na obra. A mãe de Ahab menino queria que ele usasse os cabelos longos, mas ele os cortou, dando como justificativa: “No soy un maricón”. A mãe ficou desolada, o pai, orgulhoso, conforme relata, mais tarde, um amigo da família: “¿Te acuerdas cuando eras pequeño y, por tu cuenta, te pelaste la cabeza? Él me contó después, riendo; y decia: ¡Éste sabe lo que quiere, éste sabe lo que quiere!” (p.60). Há, além disso, uma passagem em que, depois de morto o pai de Ahab, a mãe e a esposa vão à missa. A mãe demonstra desapontamento porque o pai não a deixava ir à igreja quando vivo.
Como podemos perceber, a luta arquetípica de Ahab para controlar a natureza também acontece nos demais textos mencionados, porém, enquanto nas outras obras os personagens projetam seus conflitos em algo que existe fora deles, Ahab interioriza-os, tentando controlar a si próprio e à vida. Pequod, assim como os outros textos, mostra, em sua forma, um pouco do homem da época. O texto é todo fragmentado; o tempo e o espaço têm uma importância subjetiva, pois são psicológicos. Interessa-nos pouco saber em quanto tempo a história desenrola-se, tampouco nos importa situar o acontecimento dos fatos em um espaço fixo, pois o que vale é o espaço interno de Ahab, é onde o conflito mortal acontece. Poderíamos consultar um mapa de Satolep (Pelotas) ou de Montevidéu, mas isso não acrescentaria nada à nossa leitura. O mais interessante nos espaços são os símbolos que neles aparecem, como o navio afundado, representando o “naufrágio” de Ahab; a água que invade a casa pelas goteiras, mostrando a lenta “diluição” psicológica pela qual passou o personagem ou, importantíssima, a fotografia, que tanto o perturbava, e que exerceu a função de ilustrar um pouco mais sobre o temperamento de Ahab, um homem atormentado pela própria imobilidade diante da vida. O que se torna interessante nessa fotografia é que, sendo um objeto pertencente ao espaço, traz em si a imagem de outro espaço. É a representação de um espaço da memória que é significativo para o personagem. A fotografia de Ahab nos é apresentada na capa do livro, mostrando que o texto interage, não só como outros textos e com mitos, mas também, com elementos externos a ele. As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede. Esse nó dentro de uma rede lembra-nos as teias das aranhas de Ahab. A estrutura da obra vai toda sendo “tecida” através de relações interdiscursivas que vão se estabelecendo na leitura.
A visão que temos do personagem central, Ahab, dá-se toda a partir da visão do menino sobre o pai. Podemos distinguir duas formas de autobiografia: as recordações, nas quais o autor esforça-se por estar ‘com’ aquele que foi um dia, e as memórias, nas quais o autor procura rever-se a fim de julgar, justificar e polemizar, o que supõe que ele se separa de si mesmo e se vê ‘por detrás. Sob esse ponto de vista podemos afirmar que enxergamos pelos olhos do narrador. A nossa visão é, de certa forma, vinculada à sua, portanto, vemos Ahab conforme ele é visto por seu filho.
Middelkoop fala-nos de um outro arquétipo que pode ser reconhecido no livro de Vitor Ramil: o mito do velho sábio. Aquilo que, na Antiguidade, era chamado de o espírito guia, é geralmente vislumbrado e visto internamente como um Velho Sábio, um personagem arcaico da alma coletiva que vive profundamente enterrado em todas as pessoas. Assim como outros arquétipos, esse também aparece em diversas obras. Percebe-se essa presença tanto nos velhos que servem de guia aos personagens quanto nos cuidados dos jovens com seus idosos. Em Odisseia, Penélope preocupa-se em tecer a mortalha do sogro Laertes; na Bíblia, há a presença de vários profetas, que servem como guias, inclusive na história do rei Acab; em A divina comédia, Dante é guiado pelo seu ídolo Virgílio; Moby Dick apresenta-nos um Starbuc empenhado em fazer com Acab desista de perseguir o leviatã; O velho e o mar mostra essa relação entre o jovem e o velho de forma poética, pois o menino Manolim, grato ao velho que o ensinou tudo o que sabe, toma conta dele como se fosse seu próprio pai. Pequod traz-nos esse mito de forma avessa, pois o “guia” do narrador é alguém que não consegue se ajustar à vida. Virgílio, arrumando o espelho retrovisor, Virgílio colocando seus óculos escuros, Virgílio engatando primeira: vamos lá. Ahab guia o menino em uma viagem ao inferno, porém, sem o equilíbrio com que Virgílio guiou Dante. Isso não chega a ser uma novidade, pois, na Bíblia já encontramos profetas nos quais não podemos confiar. Esses exemplos demonstram de maneira chocante a ambígua natureza enganadora do inconsciente. No caso de Pequod era o menino quem tomava conta do pai. “(…) tive medo de acordá-lo. Então, juntando nas mãos em concha a água fria, fiz o que pude para mantê-lo protegido.” (p. 102).
Outro arquétipo apresentado no livro de forma avessa é o mito de Édipo. Ahab, talvez pela forma mal resolvida com que lida com seus aspectos femininos, é um Édipo que já tomou consciência de sua maneira dependente de viver em relação às mulheres de sua vida: mãe e esposa. O personagem depende de que elas resolvam tudo para ele, chegando ao ponto de, quando o seu processo destrutivo já estava mais adiantado, precisar que elas colocassem a comida em frente à porta do quarto das aranhas, onde ele se encontrava. Entretanto, o protagonista não aceita esse fato, tentando libertar-se sem, contudo, conseguir. Como Édipo, Ahab vive vagando, sem nada enxergar, como ser imaturo que é: “Não vejo nada. Não posso andar se não sei por onde ir.”
Pequod é um espelho da alma humana. Um espelho que, ao ser lido, nos faz enxergar para dentro, ajudando-nos, assim, a encontrarmos aquele sentido para a vida do qual falou Bettelheim. O leitor da atualidade, influenciado pelo contexto em que vive, busca desafios ao ler uma obra, mas, além disso, ele busca, como todos os outros leitores, em todos os tempos, encontrar na obra um espelho do que lhe vai na alma. Um espelho que o possa ajudar nas transformações pelas quais precisa passar, lembrando-nos A metamorfose de Narciso.
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