O Morro dos Ventos Uivantes
Autora: Emily Brontë
Editora Zahar
Número de páginas: 376
Recentemente tive o prazer de reler a obra O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, em uma edição comentada da Editora Zahar. Foi uma ótima experiência, já que se trata de um dos meus clássicos preferidos. Há várias adaptações cinematográficas do livro de Brontë, mas as minhas preferidas são os filmes de 1939 e de 1992, embora haja outras mais recentes. Por gostar muito de ambos os filmes, decidi por uma resenha comparativa entre a obra literária e as duas fílmicas. Dos filmes utilizados na comparação, um é dirigido por Peter Kosminski (1992) e o outro por William Wyler (1939). Antes de começar a discorrer sobre a história, preciso dizer que, em virtude da comparação, pode haver um ou outro pequeno spoiler, sobretudo em relação ao filme de 1939.
A história trata de um homem idoso que encontra um menino abandonado e o leva para casa a fim de adotá-lo. O pequeno é muito bem aceito por sua filha, mas não o é pelo filho que, logo após a morte do velho, transforma o irmão adotivo em criado, submetendo-o a todo tipo de humilhações. Esses três personagens, Catarina, Hindley, ambos filhos legítimos do senhor Earnshaw, e Heathcliff, o jovem abandonado, dão início a uma trama em que amor, ódio e vingança dão o tom.
Filme de 1939 |
Catarina e Heathcliff, diante de tamanha afinidade que os une, apaixonam-se e crescem dando vazão às suas almas livres e intensas. Entretanto, Catarina torna-se uma mulher dividida entre sua essência absolutamente selvagem e apaixonada e a ambição de tornar-se uma grande dama. Opta pela segunda e casa-se com Edgar Linton. Heathcliff, ferido em sua inferioridade, desaparece por um tempo para retornar rico e tornar-se o senhor de O Morro dos Ventos Uivantes. A fim de vingar-se e de apoderar-se dos bens de Edgar, Heathcliff casa-se com sua irmã, Isabel, com que tem um filho, Linton, criança frágil e adoentada. Catarina morre deixando uma filha com o seu nome. Logo após o falecimento da irmã, Hindley também morre, deixando seu filho Hareton nas mãos de Heathcliff, para tornar-se mais uma vítima de sua vingança. Até aqui a narrativa literária e os dois filmes mantêm uma certa semelhança no que se refere à fábula. O filme de Wyler (1939) chega nesse ponto e termina com a morte de Heathcliff e seu encontro com Catarina no outro mundo. O filme de Kosminski guarda semelhança com livro ao continuar a história dos filhos de Heathcliff, Catarina e Hindley. Acredito que esse seja um elemento muito importante, pois conforme será visto mais adiante, a Catarina filha consegue realizar o que a mãe não conseguiu. É conveniente lembrar que no filme de Wyler os filhos sequer existem.
Partindo-se dessa breve retomada da história podemos estabelecer as personagens femininas relevantes. Obviamente, elas são: as duas Catarinas, a filha e a mãe; Isabel Linton, que se casa com Heathcliff e Nelly, que embora seja apenas uma criada, desempenha um papel de grande importância. Esta última aparece na narrativa literária e no filme de Wyler como uma narradora dentro da obra, pois é ela quem conta a história para o senhor Lockwood, inquilino de Heathcliff na granja que pertencera a Edgar Linton. Kosminski optou por um outro caminho, ao criar uma narradora que se apresenta como a própria escritora da obra.
Na obra literária, Nelly possui uma importância fundamental, pois, não só acompanha toda a história, desde o início, como, em certos momentos, interfere nela, como na ocasião em que relata a Edgar Linton sobre a discussão de Heathcliff com Catarina na cozinha, fazendo com que o esposo, enfurecido, proíba a entrada de seu rival na granja. Tal acontecimento serve como elemento desencadeador da doença fatal de Catarina. Nelly, no livro, demonstra uma profunda antipatia por Catarina, o que parece não ser percebido por esta. O poder “manipulador” de Nelly, em confronto com o de Catarina, fica evidente em várias passagens em que a patroa pede a criada que utilize algum tipo de artifício para convencer Edgar a fazer o que Catarina quer. Nelly, demonstrando a sua força e o seu poder de resistência, posiciona-se a favor de seu patrão, dificultando as manipulações de Catarina.
Filme de 1992 |
A personagem Nelly do filme de Wyler, embora também seja uma narradora dentro da obra, não tem a força da personagem literária, mostrando-se mais apagada. Na narrativa fílmica de Kosminski, essa personagem, conforme já foi mencionado, perde a sua posição de narradora para uma personagem que aparece como a escritora da obra. Entretanto, ela não deixa de ter a sua força. A Nelly de Kosminski demonstra ser mais afeiçoada a Catarina e mais compreensiva com as mazelas daqueles que estão à sua volta, não emitindo julgamentos, como acontece com a do livro. Como as outras duas, acompanhou toda a história desde o início e assume uma postura contemporizadora.
A Isabel da narrativa literária, assim como a de Kosminski, pode ser encarada como o alter ego de Catarina, já que, sendo o seu oposto, caiu em desgraça justamente por ter seguido o caminho que Catarina não ousou seguir. A Isabel de Wyler é um caso à parte, pois, apesar de todos os maus-tratos a que é exposta por Hethcliff, continua amando-o e servindo-o como um cãozinho, não se rebelando em nenhum momento, como ocorre com as outras duas, cujo amor termina em ódio. Isabel, como geralmente foram as mulheres de sua época e de sua cultura, é uma jovem despreparada para a vida, repleta de sonhos românticos acerca do casamento. Por causa desse despreparo e de sua falta de experiência, não é capaz de reconhecer em Heathcliff o predador que este representa. Alma delicada e sonhadora, embora determinada, acredita que poderá realizar seus anseios de um amor verdadeiro com o homem que se tornaria o seu carrasco. A perdição de Isabel foi a de sentir-se profundamente atraída por alguém que não pertencia ao seu universo de mulher civilizada. Heathcliff é um personagem rude, de alma selvagem, com uma natureza completamente oposta a de Isabel. Ao contrário, Catarina, como ela própria sabia, tem a mesma essência de Heathcliff, mas sente-se atraída pelo mundo de Edgar Linton, ao qual Isabel pertence. Catarina demonstra a percepção que tem da situação em conversa com Nelly:
(…) Meu amor por Heathcliff assemelha-se aos rochedos imóveis que jazem por baixo do solo: fonte de alegria pouco aparente mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, sempre, no meu pensamento. Não como um prazer, visto como nem sempre sou um prazer para mim mesma, mas como o meu próprio ser (…). (p. 73)
Também em oposição a Isabel, que não tinha consciência de não pertencer ao mesmo universo do homem a quem amava, Catarina sabia que o mundo de Edgar Linton não era o seu. Tinha plena convicção de que o “céu” a que tanto almejava não lhe pertencia:
— Se eu estivesse no céu, Nelly, seria extremamente infeliz.
— Porque você não é digna de ir para lá. Todos os pecadores seriam infelizes no céu.
— Mas não é por isso. Sonhei uma vez que estava lá.
(…) o céu não me pareceu minha verdadeira residência. Dilacerava o coração de tanto chorar no desejo de voltar para a Terra e os anjos ficaram tão aborrecidos com isso que me jogaram no meio da charneca, no alto do O Morro dos Ventos Uivantes, onde despertei, chorando de alegria. Eis o que te explicará meu segredo, tão bem como o teria feito meu outro sonho. Não me interessa casar com Edgar Linton, como não me interessava estar no céu. (p. 71-72)
Catarina não é uma mulher de delicadezas celestes, ela é tão terrestre quanto Heathcliff, e sabe disso. O que não acontece com Isabel, que não percebe o abismo que a separa de seu futuro marido. Isabel, nesse sentido, está mais de acordo com a sociedade em que vivem do que Catarina que não é, absolutamente, uma mulher ingênua, incapaz de perceber o que se passa. Catarina cometeu o erro de casar-se com Edgar sabendo o que isso significava:
Seja de que forem feitas nossas almas, a dele e a minha são as mesmas e a de Linton é tão diferente como um raio de lua de um clarão, ou como a geada do fogo. (p. 72)
Apesar de saber do erro que está cometendo, Catarina não tem coragem de romper com os padrões da sociedade em que vive. Isso é o que a diferencia de outras personagens femininas, como Anna Karenina, de Tolstói, por exemplo. Enquanto esta última rompe com a sociedade para ser fiel a si mesma, Catarina rompe consigo para viver de acordo com a sociedade. Paga um preço alto por isso. Talvez tão alto quanto o preço que Isabel pagou por assumir um papel de transgressora quando não era essa a sua natureza.
Entretanto, Catarina, a filha, redime todas as mulheres da história e essa é a razão pela qual o filme de Wyler perde ao deixar de fora a segunda geração. Ao se pensar na vida dessas personagens, vemos que a única que conseguiu se realizar foi Cathy. Nelly não teve nenhum envolvimento emoconal, viveu apenas para servir aos seus senhores. Isabel e Catarina foram profundamente infelizes por causa das escolhas equivocadas que fizeram. Cathy, porém, conseguiu fazer o caminho inverso ao da mãe, pois, tendo nascido no “céu” dos Linton, assumiu seu amor por Hareton, jovem rude, com uma essência parecida com a de Heathcliff, embora mais generoso. Catarina nasceu Earnshaw e, embora desejasse tornar-se Heathcliff, morreu Linton. Cathy nasceu Linton, tornou-se Heathcliff e, posteriormente, com a morte do jovem marido, tornou-se Earnshaw, fechando, assim um ciclo iniciado pela mãe. Dessa forma conseguiu ser feliz, pois teve coragem para deixar o céu e viver na terra. O Morro dos Ventos Uivantes constitui-se em uma excelente leitura para quem aprecia clássicos, sobretudo essa edição da Zahar, já que é comentada. Nem preciso dizer que recomendo os filmes.
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