Memória de minhas putas tristes: obra-prima de Gabriel García Márquez - Editora Record

Memória de minhas putas tristes: obra-prima de Gabriel García MárquezMemória de minhas putas tristes, de Gabriel García Márquez, Editora Record, foi uma leitura que mexeu muito comigo, pela forma com a qual a narrativa lida com algumas angústias humanas. Ao completar 90 anos um homem solitário decide que se dará de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. E ele tem, sim, a sua noite, que não acontece do jeito que ele imaginou, pois a sua menina, a jovem Delgadina (ou seja lá o nome pelo qual ela atenda), é muito dorminhoca. Mas ele se apaixona pela moça de forma intensa e arrebatadora. E que ninguém subestime a força de um amor invernal! 

Com a descoberta desse amor tardio, a vida do nosso protagonista dá uma volta de 180 graus. A partir do momento em que ele se apaixona por uma jovem que poderia ser sua neta (talvez bisneta), ele começa a se deparar com a triste realidade de sua velhice. Começa a perceber que a morte não vai chegar um dia, em uma data marcada, mas ela vem aos poucos, de vagar, um pouco a cada dia, desde que nascemos. O ancião apaixonado dá-se conta, pela primeira vez em sua vida, de que o tempo passou. Percebe que está velho, embora por dentro ainda sinta queimar o fogo da juventude. 

Memória de minhas putas tristes: obra-prima de Gabriel García Márquez

A obra trata de um dos principais dilemas humanos: sentir a proximidade da morte e saber que nada pode ser feito a respeito. É uma história tocante em sua humanidade. É lindo ver a forma como o nosso protagonista transforma-se, como cresce e humaniza-se. Gabriel García Márquez dispensa recomendações, ainda assim, recomendo mil vezes o seu livro Memória de minhas putas tristes, mais uma obra prima dentre tantas outras.





Memória de minhas putas tristes: obra-prima de Gabriel García Márquez


Postado por: Saraiva | Cultura | Submarino

E então, que quereis?... - Maiakóvski


Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

Do livro “Maiakóvski: Antologia Poética”, Editora Max Limonad: 1987.

A colheita dos dias, de Valesca de Assis: uma releitura

A colheita dos dias, de Valesca de Assis: uma releituraA colheita dos dias, de Valesca de Assis: uma releitura
Um dos grandes prazeres de um leitor é, depois de algum tempo, reler uma obra da qual ele tenha gostado muito. Grande parte desse prazer se deve ao fato de que, com o passar do tempo, mudamos a visão que temos do mundo que nos rodeia. Em outras palavras, amadurecemos, adquirimos a vivência necessária para a compreensão de nuances da narrativa que nos escaparam em uma primeira leitura. Pois muito bem, foi exatamente isso que aconteceu, com esta leitora que vos escreve, ao reler a obra A Colheita dos Dias, de Valesca de Assis.

Havia lido este livro (pequeno, com apenas 60 páginas), há alguns anos, com muito gosto. Lembro-me de ter ficado muito impactada pela personagem Letícia, cuja densidade e riqueza interior eram, de fato, fascinantes. Em um daqueles ataques de nostalgia, resolvi reler alguns livros, e este foi um deles (li em uma sentada!). Claro, uma nova leitura, um novo prazer!

Foi então que me lembrei de que este livro fora relançado há uns dois ou três anos e, na época, li algo sobre ele ter sido reescrito pela autora. Resolvi comprá-lo para comparar a edição nova, reescrita , com a antiga. Não o encontrei na Amazon, na Cultura estava esgotado, mas na Estante Virtual podemos encontrar inclusive a edição antiga. Comprei-o na Saraiva

Ao ler a nova edição (agora com 112 páginas), a grata surpresa! Com os autores acontece o mesmo que conosco, leitores. Valesca de Assis, agora mais madura e com mais vivência, conseguiu tornar melhor o que já era ótimo. A história, narrada em primeira pessoa, traz um "diálogo" (mais para monólogo, na verdade) entre a narradora e sua filha morta, cujos ossos encontram-se guardados dentro de uma caixa de ferramentas. Atormentada por amargas verdades reveladas de forma cruel, a narradora viaja de Porto Alegre até a estância da família levando consigo os restos mortais da amada filha. Qual o seu objetivo com isso? Deixarei para que os leitores descubram por si mesmos. O que posso garantir é que a leitura de A Colheita dos Dias, de Valesca de Assis, valia a pena antes e continua valendo agora. 









A colheita dos dias, de Valesca de Assis: uma releitura

Poema em linha reta - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972.



Setembro Freire: Homenagem do estado de Mato Grosso ao seu ilustre filho



      Silva Freire, poeta nascido em 20 de setembro de 1928, no município de Santo Antônio do Leverger, MT, e falecido em Cuiabá, em 11 de agosto de 1991, é homenageado, neste mês de setembro, na edição de número quatro do Circuito Cultural Setembro Freire, promovido pela Casa de Cultura Silva Freire, em parceria com o governo de Mato Grosso. 

      Além de poeta, ocupante da cadeira de número 38 da Academia Mato-grossense de Letras, Silva Freire foi jornalista, advogado e professor na faculdade de direito da Universidade Federal do Mato Grosso. 

     No decorrer da vida recebeu inúmeras e merecidas homenagens, uma delas da Univag Centro Universitário de Várzea Grande, cuja biblioteca recebeu o nome desse ilustre poeta. 
      
Suas principais obras são:
  • Meu chão
  • Pássaro impune
  • As redes
  • Os meninos de São Benedito
  • Águas de visitação
  • Trilogia Cuiabana

Do ideal hegeliano à era da reprodução técnica


Observando-se o caminho percorrido pelo pensamento humano desde que o homem se libertou da forma mítica de conceber o mundo até a atualidade, percebe-se que há duas vias possíveis para que expliquemos a realidade que nos rodeia. Uma, segundo a qual, há um elemento universal e estático que determina tudo o que existe. A outra, contrariamente, mostra-nos uma realidade em constante transformação. De acordo com o primeiro conceito, a obra literária é vista como expressão dessa unidade universal e absoluta, o que implica que haja em todas as obras, de qualquer tempo ou cultura, algo que poderá ser reconhecido por todos os seres humanos, também de qualquer tempo ou cultura. O segundo conceito, no entanto, defende uma visão em que a obra aparece como única em cada época ou sociedade em que for concebida, não possuindo uma essência universal.

Kant e Hegel, dois filósofos alemães do século XVIII, divergiam a esse respeito. O primeiro acreditava na existência de uma verdade universal e inatingível para o homem. O segundo, por outro lado, defendia a ideia de que todas as verdades são humanas e basicamente subjetivas.

Enquanto filósofos anteriores tentavam determinar critérios para o que o homem pode saber sobre o mundo, estabelecendo premissas atemporais para o conhecimento humano sobre a realidade, Hegel afirmava não ser possível concebermos essa atemporalidade, pois as bases do conhecimento mudam de geração para geração, tornando-se impossível, portanto, a existência de verdades eternas. Segundo a concepção filosófica hegeliana, a razão não pode ser desvinculada do tempo.

Assim, Hegel desenvolveu uma forma histórica de pensar, segundo a qual, uma filosofia ou pensamento não podem ser separados do seu contexto social e histórico. Fora do processo histórico não existem critérios que possam decidir sobre o que é mais ou menos verdadeiro e racional, pois a razão é um processo dinâmico. Dessa forma, pode-se afirmar que a filosofia hegeliana não se volta para o entendimento da natureza mais profunda da existência, mas sim, para um pensamento produtivo, através de um método que visa à compreensão do curso da história. A razão humana é progressiva, ou seja, caminha conforme o progresso da humanidade, acrescentando sempre algo de novo ao que já existe. Um pensamento, geralmente, formula-se a partir de outros anteriores, para ser contradito por outros no futuro. Assim, surgem duas formas opostas de pensar criando uma tensão, que será quebrada com o aparecimento de um terceiro pensamento formulado, sintetizando os pontos positivos dos dois anteriores, dando forma à dialética hegeliana. Se a realidade está impregnada de opostos e contradições, a descrição dessa realidade deve revelar, obrigatoriamente, esses opostos e contradições.

A compreensão dessa forma de conceber o mundo é fundamental para que se entendam as idéias de Hegel sobre a arte. Para ele, não podemos restringir o conceito de belo artístico ao plano ideal, pois, embora ele seja ideia, concretiza-se na esfera do real.

Em sua Estética, Hegel afirma que o ideal manifesta-se de três formas diferentes. Na primeira, as representações têm como centro o divino. Entretanto, o divino concebido como unidade e universalidade só existe no âmbito do pensamento. No segundo caso, o divino é representado subtraindo-se à abstração e tornando-se acessível à intuição e à representação figurada. A substância divina pode decompor-se em vários deuses independentes com plenitude própria; ou o divino poderá estar presente em tudo o que for sentido, pensado, sofrido ou realizado pelo homem; ou, ainda, a alma humana poderá apresentar-se como matéria da arte. Embora em sua condição de espírito puro, o divino seja objeto do conhecimento abstrato, o espírito encarnado na realidade ativa pertence à arte.

No terceiro caso, para que o ideal conserve a pureza, é necessário que as manifestações mostrem-se em plena serenidade e tranqüilidade. Devem estar livres de qualquer influência da subjetividade. As coisas positivas e nobres, tudo o que é perfeito no homem é manifestação da verdadeira “substância espiritual, moral e divina cujo poder se afirma no sujeito”. Já que o ideal pode ser manifesto no mundo exterior, devemos levar em consideração o princípio do desenvolvimento, intimamente ligado às diferenças e luta dos contrários, a determinação progressiva, ou ação.

A serenidade e felicidade da situação acima citada também é suscetível de movimento ativo e de desenvolvimento progressivo, sendo que esse desenvolvimento deve sujeitar-se à unilateralidade e ao equívoco, pois o uno, quando apresentado em suas particularidades, mostra-se de forma fragmentada e conflituosa. Assim sendo, já não pode mais fugir da ação da subjetividade e seu caráter finito. “Nem mesmo os deuses eternos do politeísmo vivem uma paz eterna; confrontam-se em lutas povoadas pelas paixões e interesses opostos, e são obrigados a submeter-se ao destino. Nem o deus cristão consegue escapar à humilhação do sofrimento e à vergonha da morte (…)”. (Hegel, p. 192).

Para Hegel, esses conflitos contribuem para o fortalecimento do espírito, pois “a grandeza e a força do homem medem-se pela grandeza e a força da oposição que o espírito é capaz de vencer para encontrar a unidade (…)”. (p. 192) A luta entre os contrários serviria para o fortalecimento da ideia e do ideal que, nesse caso, conseguem permanecer “íntegros no negativo”.

Se o ideal entra em contato com os conflitos da individualidade, torna-se necessário pensar-se sobre a idealidade das determinações a que se liga o ideal. O ideal necessita do mundo para concretizar-se, entretanto, precisa manter a sua essência. O mundo deve ser considerado sob o ponto de vista da vontade, já que é através dela que o espírito se expressa e se manifesta. O estado geral do mundo representa a realidade do espírito.

O ideal é unidade em si, e apoia-se sobre si mesmo, o que fica evidente na demonstração de sua serenidade e suficiência. Mas, se levarmos em consideração a independência do ideal, conclui-se que o mundo surge para lhe dar forma. Entretanto, devemos atentar para a duplicidade de sentidos da palavra “independência”. Em um sentido, independente é aquilo que existe por si mesmo sendo sua própria causa. O absoluto é independente, porém, quando em confronto com o particular da existência concreta, sua independência desaparece. Mas, em outro sentido, é considerado independente a individualidade que se basta, tanto na forma quanto na firmeza de caráter. Entretanto, nesse segundo caso acontece algo parecido com o primeiro. Por faltar ao particular a substancialidade do absoluto, opõe-se a ele, perdendo sua independência. Hegel equaciona essa questão dizendo que “a verdadeira independência consiste na unidade e na penetração recíproca do individual e do geral, adquirindo o geral uma existência concreta, individualizando-se, e obtendo a subjetividade do individual e do particular uma base sólida e um conteúdo verdadeiro para a sua realidade que só o geral lhe pode fornecer”.(p. 193/194)

Assim, conclui-se que o estado geral do mundo para ser independente, deverá apresentar sua generalidade substancial de forma subjetiva, e o pensamento é o exemplo citado por Hegel para um modo de manifestação dessa identidade, já que ele apresenta união do geral e do subjetivo. A arte também pode ser um bom exemplo, entretanto, esta difere do pensamento por buscar a beleza.

O universal afirma-se no indivíduo, não como algo que o subordina, mas como algo que faz parte de seu caráter, que o compõe e, assim sendo, estará sempre sujeito às particularidades desse indivíduo, suas decisões, abstrações, etc., ou seja, estará sempre sujeito ao acidental. Hegel afirma que quando não ocorre essa atuação da vontade do indivíduo, a sociedade precisa de leis rígidas, mas quando, ao contrário, o indivíduo é capaz de seguir um senso interno de justiça e moral poderá ser mais autônomo. Essa diferença, segundo o autor, fica evidente ao compararmos a idade heroica (heróis das tragédias gregas, das epopeias de Homero ou dos antigos poemas árabes, por exemplo) com a atualidade. Na primeira, o indivíduo possui um caráter mais próximo do ideal por permitir a afirmação do espírito. Na segunda, mostra uma independência voltada somente para si. A idade heroica seria mais apropriada para a manifestação artística, já que permite uma manifestação plena do ideal, sem influências das particularidades.

Nesse sentido, há uma discordância entre as ideias de Hegel e a teoria aristotélica de mímesis, pois para o filósofo alemão o importante não é imitar a realidade, mas sim expressar o ideal, o absoluto. As influências exteriores seriam um tipo de limitação imposta que excluiria a independência na criação. A atualidade não favorece a manifestação do espírito absoluto por estar “aprisionada” às leis, aos costumes, etc.

O universal não se pode manifestar de forma total na exterioridade, somente em formas particulares. Portanto, a arte só poderá representar, partindo do indeterminado, a descrição de ações determinadas. O estado ideal representado pela arte mostra-se particularizado, mas sob o domínio de forças universais. Todavia, esse modo de existir particular é inferior à grandeza do conteúdo substancial por não apresentar nenhuma afinidade com a profundidade dos interesses espirituais. “(…) a acidentalidade e a arbitrariedade opõem-se à substancialidade e à universalidade que caracterizam o conceito do que é verdadeiro em si. Temos pois, de procurar, para o conteúdo concreto do ideal, uma expressão artística que seja simultaneamente mais determinada e mais digna”.(Hegel, p. 207) O ideal é algo estático, que para se expressar no indivíduo apresenta-se multifacetado, em diversas formas que se opõem umas às outras, resultando em movimento. Então Hegel apresenta-nos o conceito de situação, que representa “(…) a fase intermediária entre o mundo geral e imóvel em si e a atividade concreta, constituída de ações e reações e, assim, ela deve possuir os caracteres destes dois extremos e permitir-nos a passagem de um para outro”.(p. 209) a situação pode mostrar-se de três formas: ausência de situação, quando esta ainda não está determinada, pois se encontra em estado de generalidade; situação determinada anódica, que é o trânsito da generalidade para a particularidade e, finalmente, a colisão, que é a possibilidade de conflito entre os dois momentos anteriores.

No que se refere à ação, é difícil determinarmos seu início, já que ela sempre traz em si determinadas circunstâncias que a antecedem. Para Hegel, somente a poesia pode representar todos os momentos da ação, o que a torna inferior à prosa, pois “(…) não pode interessar à arte adquirir como ponto de partida o primeiro começo exterior de uma ação determinada, pela profunda razão de que tal começo só o é em referência à evolução natural e exterior dos acontecimentos e, referida a ele a ação, só se considera a unidade empírica dos eventos, não o conteúdo verdadeiro da ação”.(p. 223) É preciso, para compreender a ação, que se conheça as circunstâncias que levaram à colisão e como se busca a solução para isso. Embora as ações sejam muitas, na representação artística são de número limitado, “pois a arte só pode considerar as ações necessitadas pela ideia”.(p.224)

Na arte, a situação e o conflito são o que despertam o interesse, mas o que dá movimento à obra é a reação. Isso ocorre através das “forças gerais”, que são o conteúdo e o fim daquilo para o qual se age; da ativação dessas forças pelo indivíduo agente e da interação das forças gerais com a ação do indivíduo.

Para que possamos entender a forma pela qual o ideal manifesta-se no mundo concreto, é necessário que se leve em consideração as diferentes culturas, os diferentes ambientes naturais, etc. “Se se adotasse a nebulosa representação que hoje se tem do que é o ideal, concluir-se-ia que a arte deve quebrar todas as ligações com o mundo do relativo porque tudo o que é exterior lhe é indiferente, é oposto e indigno do seu espírito e da sua interioridade”.(p.245) Desse modo, a arte apresenta-se como forma de elevação acima do mundano, devendo afastar-se daquilo que for acidental, voltando-se para o mundo interior, dos sentimentos, tornando-se inacessível às pessoas comuns.

Hegel rejeita esse ponto de vista, pois para ele o homem é o “verdadeiro centro do ideal”. Considerando-se que sofre influências exteriores (espaço geográfico, época, cultura, condição social, etc.) que geram oposições e movimentos, não admite o ideal uno e estático. Para ele, o conteúdo da obra de arte surge do contato do indivíduo com o mundo.

Marx tomou como ponto de partida a filosofia hegeliana, entretanto, distanciou-se da noção de espírito universal, do idealismo de Hegel. Marx dizia que os filósofos sempre tentaram interpretar o mundo em vez de mudá-lo. Essa postura marcou uma nova fase no modo de pensar da humanidade, pois deixava para trás as especulações abstratas que houvera até Hegel para seguir duas linhas de pensamento mais concretas: o existencialismo de Kierkgaard e o materialismo de Marx. O marxismo possui um objetivo prático e político, que leva em conta as condições materiais de vida numa sociedade como determinantes do pensamento e da consciência das pessoas que nela vivem, além de decisivas para a evolução da história. Marx concordava com a ideia de Hegel de que a evolução histórica acontecia a partir da tensão entre opostos, da qual surgia uma síntese, ou equilíbrio. Entretanto, enquanto Hegel acreditava que o “espírito universal” era a força propulsora da história, Marx dizia que, ao contrário, as condições materiais eram determinantes das espirituais. Para ele, as forças econômicas são as principais responsáveis pelas mudanças em todos os setores da sociedade e nos rumos da história. Segundo sua teoria, a sociedade possui uma infraestrutura, que são as relações materiais e econômicas, e uma superestrutura, que representa o modo de pensar da sociedade, suas instituições políticas, suas leis e também sua religião, moral, arte, filosofia e ciência.

Como são as condições materiais que sustentam todos os pensamentos e ideias de uma sociedade, podemos dizer que a superestrutura é o reflexo de sua infraestrutura. Para Marx, o modo de produção numa sociedade determina as suas relações políticas e ideológicas, o que nos leva a concluir que não há um direito natural válido para todas as épocas. O “moralmente correto” é determinado pela infraestrutura, ou seja, a classe dominante determina o que é certo ou errado. Embora Marx admitisse a possibilidade de as relações na superestrutura exercerem alguma influência sobre a base, ele acreditava que aquilo que fazia com que a história avançasse eram as mudanças na infraestrutura da sociedade.

Marx apresenta-nos a ideia de um homem que pode ser senhor de si mesmo, dizendo que a consciência humana é uma espécie de “divindade suprema, divindade que não suporta rivais” (Marx e Engels, p. 7) Cita uma passagem da tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, definindo o heróis trágico com sendo o “primeiro mártir do calendário filosófico”. Assim como Prometeu lutou para libertar o homem da servidão aos deuses, Marx tentava, com suas ideias, libertar a classe operária da servidão aos capitalistas, através de uma nova consciência de si e da sociedade.

Possuía uma visão prática, voltada para o concreto, acreditando que “o espírito que constrói os sistemas filosóficos nos cérebros dos filósofos é o mesmo que constrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo…” (p. 8), devendo ser posta a serviço da transformação do homem.

Para ele, cada época é subjugada pelas ideias de sua classe dominante, ou seja, “a classe que é a potência material dominante da sociedade é também a potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo dos meios de produção intelectual, de maneira que, em média, as ideias daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual estão desde logo submetidas a essa classe dominante”.(p. 9)

Conforme já citado anteriormente, Marx não aceita o conceito de verdade universal, pois para ele, essa é apenas a manifestação dos ideais dominantes, ou seja, quando determinada “verdade” deixa de ser de interesse da classe dominante, deixa de ser “verdade”. “Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que dominava antes, é obrigada, até unicamente para atingir os seus fins, a apresentar os seus interesses como se representassem o interesse comum de todos os membros da sociedade ou, para exprimir as coisas no plano das ideias, essa classe é obrigada a dar aos seus pensamentos a forma da universalidade, a apresentá-la como os únicos razoáveis, os únicos válidos universalmente”.(p. 11)

No que se refere à relação do homem com o mundo em que vive, o autor diz que todo o conhecimento que possuímos do que nos é externo passa pelos sentidos, ou seja, nos apropriamos do mundo através do que vemos, ouvimos, cheiramos, etc. O homem afirma-se no mundo conhecendo-o e, assim, aprende a conhecer a si próprio. De acordo com essa visão, a arte surge da educação dos sentidos. Essa é uma diferença bastante relevante entre Marx e Hegel, pois este último acreditava que a arte nasce do “espírito universal”. Marx acreditava não ser possível estudar a arte sem levar em consideração o contexto de trabalho do homem, e chamava a atenção para o fato de o capitalismo transformar a arte em mercadoria. “Um escritor é um operário produtivo, não por produzir ideias, mas porque enriquece o editor que se encarrega da impressão e da venda dos livros, isto é, porque é o assalariado de um capitalista”.(p. 34) Para solucionar esse problema, o escritor deve manter-se consciente do mundo em que vive, com suas questões de ordem política, econômica, social, etc., para que suas obras possam proporcionar às classes oprimidas uma oportunidade de transformação do ser, de uma conscientização de si mesmo como sujeito histórico. Assim, o escritor deve ser aquele que, embora necessite de dinheiro para sobreviver, não deve corromper a sua arte. O texto literário deve apresentar um caráter transformador sem abrir mão do valor estético, que, para Marx, é o mais importante.

Seguindo a linha de pensamento de Marx, diz Vázquez: “cada sociedade tem, em certo sentido, a arte que merece: a) na medida em que é aquela que favorece ou tolera; b) na medida em que os artistas, membros de tal sociedade, criam de acordo com o tipo peculiar de relações que mantêm com ela”. Isto quer dizer que arte e sociedade, longe de se acharem numa relação mútua de exterioridade ou indiferença, se buscam ou se rechaçam, se encontram ou se separam, mas jamais podem voltar completamente as costas uma para a outra.”(Vázquez, p. 121)”.

De acordo com essa visão, não existe arte que não contribua de alguma forma com o seu mundo. Vázquez fala sobre o processo dialético que há entre o universal e o particular na arte. A obra sempre inicia no particular, mas seu resultado é o universal e, assim, o homem, como particular e histórico que é, universaliza-se. Cabe salientar, entretanto que essa universalidade não possui um sentido metafísico, mas, ao contrário, funciona como elemento enriquecedor e humanizador do homem. Faz-se necessário que, na obra de arte, esses dois fatores, particular e universal, encontrem-se em equilíbrio, pois ambos “(…) se unem na criação artística tão harmonicamente que basta acentuar excessivamente um ou outro termo para que esta dialética se quebre, não sem graves consequências para a arte”.(p. 124) Tal dissociação desses dois elementos compromete o valor estético da obra.

Para Vázquez, há na sociedade atual, uma contradição com a arte, que tentando manter esse equilíbrio acima referido, funciona como fator de resistência à alienação e à desumanização do mundo, “(…) a sociedade se opõe ao artista enquanto busca expressar o humano”.(p. 126)

Ainda em direção a uma lógica que relaciona a obra de arte com a sociedade, ao iniciar a sua obra, A teoria do romance, Lukács fala-nos de um tempo em que não havia filosofia, pois todas as explicações eram encontradas nos mitos. Segundo o autor, esse era um tempo feliz, sem dúvidas, portanto, sem necessidade de respostas. Esse é o contexto em que surge a epopeia, gênero que reflete plenamente a forma de pensar e de sentir do homem da época. Assim, o mundo grego nos é apresentado de forma homogênea e fechada. Em outras palavras, é perfeito e, portanto, estático, ao contrário do nosso mundo atual que, cada vez mais vasto e rico, perdeu em totalidade o que ganhou em abrangência. Essa é a razão pela qual Lukács afirma a impossibilidade de produzir-se epopeias nos dias atuais, pois o homem grego vivia no equilíbrio de uma estrutura fechada, que se relaciona com o gênero épico, enquanto o homem atual rompe com essa harmonia e o mundo passa a apresentar-se com uma estrutura incoerente. No universo grego, o homem não conhecia solidão, enquanto no mundo atual, é profundamente solitário.

A tragédia conseguiu permanecer intacta em sua essência, embora tenha sofrido algumas mudanças. A epopeia, ao contrário, desapareceu, dando lugar ao romance. O que difere a epopeia do romance é o fato de que este último pertence a uma época em que a totalidade da vida já não é mais evidente. A epopeia apresenta-nos uma totalidade acabada para si mesma, enquanto o romance tenta descobrir essa totalidade.

O romance possui um nível de abstração que pode se tornar perigoso por três razões: 1 A forma do romance contrapõe-se à infantilidade normativa da epopeia, mostrando uma força amadurecida. O romance compõe-se por uma fusão paradoxal de fatores heterogêneos e descontínuos, tendo sua coerência alcançada por meio da forma. Enquanto os outros gêneros literários possuem uma forma acabada, no romance, ela é um processo.

Com relação a isso, Lukács destaca quatro momentos nesse gênero. No primeiro, o herói é um visionário que se sente menor que o mundo, solitário. Isso acontece em razão de uma inadequação entre a alma e a obra literária, entre interioridade e aventura. Observa-se assim, um caráter degradado do herói problemático, que mostra uma inaptidão que impede a realização do ideal. A isso Lukács chama de idealismo abstrato, e cita como exemplo a obra D. Quixote, de Cervantes.

Um segundo momento seria o que o autor denomina romantismo da desilusão, no qual o herói é apresentado como um ser desajustado, em conflito com o mundo. Nesse caso, há uma tendência, por parte do indivíduo, de buscar uma fuga das questões conflituosas e das lutas exteriores. Werther, de Goethe, é o exemplo apresentado por Lukács.

Há, ainda, o que chamamos de anos de aprendizado. Nesse caso, o herói sofre, entretanto, aprende com as experiências da vida e, por isso, consegue realizar algo de positivo. Lukács chama a esse terceiro tipo, de romance de educação. O indivíduo situa-se entre os dois tipos apresentados anteriormente, abordando a reconciliação do homem problemático com a realidade concreta e social. Wilhelm Meister, de Goethe, retrata essa espécie de romance.

No quarto tipo de romance. Lukács cita o russo Tolstoi como sendo o representante maior da epopeia moderna. Essa é a literatura da superação das formas sociais de vida, e o herói atua sobre a sociedade para ajustar-se a ela. Mas essa superação não consegue resolver os problemas inerentes ao homem moderno. Ao contrário, acentua-os, ficando muito longe da realidade sem problemas da épica.

Após demonstrar, em A teoria do romance, como a obra literária reflete o homem e sua época, Lukács assume, em seu texto “Narrar ou descrever?”, uma postura absolutamente marxista. Mostra-nos que a forma de escrever denota um tipo de concepção da sociedade, relacionando o estilo da obra com uma visão política do mundo. Ao escrever de uma determinada maneira, o escritor faz uma escolha ideológica. Lukács inicia o texto fazendo uma reflexão sobre a forma de narrar e sobre como o acidental pode tornar-se “necessário” dentro da obra, na medida em que sinaliza algo importante que se dá em seu interior. Assim, uma descrição pode ter valor artístico se estiver a serviço da narração. Para exemplificar seu pensamento, Lukács cita descrições feitas em obras de autores célebres, como Flaubert, Tolstoi, Scott, Balzac e Zola: "em Walter Scott, Balzac ou Tolstoi, vínhamos de conhecer acontecimentos que eram importantes por si mesmos, mas eram também importantes para as relações inter-humanas dos personagens que os protagonizavam e importantes para a significação social do variado desenvolvimento assumido pela vida humana de tais personagens. Constituíamos o público de certos acontecimentos nos quais os personagens do romance tomavam parte ativa. Vivíamos esses acontecimentos. Em Flaubert e em Zola, os mesmos personagens são espectadores mais ou menos interessados nos acontecimentos — e com isso os acontecimentos se transformam, aos olhos dos leitores, em um quadro, ou melhor, em uma série de quadros. Esses quadros, nós os observamos." (p. 49/50)

A narração apresenta-nos uma visão ideológica transformadora e a ideia de que o mundo muda constantemente. O ato de narrar é dinâmico, contrapondo-se à descrição que é estática e isenta, demonstrando uma visão ideológica conservadora das classes dominantes. “O contraste entre o participar e o observar não é casual, pois deriva da posição de princípio assumida pelo escritor, em face da vida, em face dos grandes problemas da sociedade, e não do mero emprego de um diverso método de representar determinado conteúdo ou parte de conteúdo”.(p. 50) Lukács lembra-nos que não é possível a existência de fenômenos puros, portanto, nem a narração, nem a descrição aparecem isoladamente. “O que nos importa são os princípios da estrutura da composição e não o fantasma de um ‘narrar’ ou ‘descrever’ que constituam um fenômeno puro”.(p. 50) O narrar pressupõe uma postura transformadora frente à sociedade, o descrever, ao contrário, mostra-nos a posição de um mero observador. “A narração distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas”.(p. 62)

Se Lukács acredita que a obra espelha a sociedade, Goldmann afirma que a visão de mundo do autor sempre será expressa, voluntariamente ou não. A literatura é fortemente influenciada pela sociedade, sendo muito importante entendermos os fatores econômicos e as relações entre as classes sociais para que entendamos, também, a obra literária. Alguns pensadores dizem que essa forma de conceber o literário rebaixa os valores espirituais ao colocá-los no mesmo patamar das contingências sociais e econômicas. De acordo com essa visão, o marxismo não passa de uma ideologia voltada apenas para a satisfação de necessidades materiais e incessível aos valores espirituais. Goldmann contesta essa visão de mundo afirmando que “os verdadeiros valores espirituais não se destacam da realidade econômica e social, mas se dirigem precisamente para esta realidade tentando introduzir nela o máximo de solidariedade e de comunidade humanas”.(p. 72) Convém salientar que o autor deixa claro a condição hipotética dessa influência do social sobre o literário, já que se trata de uma teoria. Tal hipótese poderá ou não ser comprovada.

De acordo com o materialismo histórico, tanto a literatura, quanto a filosofia são “expressões de uma visão de mundo” e, portanto, são fatos sociais. Nisso reside a essência dos estudos literários. O escritor pode sofrer influências do meio em que vive através da recusa ou da assimilação das ideias vigentes ou, ainda, associando-as a outras de lugares ou tempos distantes.

Associando o método estruturalista genético aos estudos de literatura, Goldmann diz que tentamos responder a todas as questões da vida, dando sentido a elas através de nossas ações. Desse modo, criamos um equilíbrio entre nós mesmos e o mundo, ou seja, entre o sujeito que age e entre o objeto que sofre a ação:

"(…) todo equilíbrio mais ou menos satisfatório entre as estruturas mentais do sujeito e o mundo exterior redunda numa situação em que o comportamento dos homens transforma o mundo e onde essa transformação torna o antigo equilíbrio insuficiente e gera uma tendência para um novo equilíbrio que, por sua vez, será ulteriormente superado.
Assim, as realidades humanas apresentam-se como processos bilaterais: ‘desestruturação’ das estruturas antigas e ‘estruturação’ de novas totalidades, aptas a criarem equilíbrios que poderão satisfazer às novas exigências dos grupos sociais que as elaboram." (p. 204)

Para que estudemos os acontecimentos humanos, seja em que campo for (econômico, político, social, cultural, etc.), faz-se necessário que tenhamos conhecimento de como esses equilíbrios se desfazem e refazem.

Em primeiro lugar é preciso que determinemos o o que é esse sujeito que age sobre o mundo. Segundo Goldmann, ele pode ser visto de três formas: como “indivíduo” (empirismo, racionalismo e fenomenologia); como coletividade; ou como coletivo composto por uma rede de indivíduos, como acontece com as teorias hegeliana e marxista. A obra deve ser analisada a partir do grupo social em que foi criada e não do indivíduo que a criou:

"(…) quando se esforça por compreender a obra no que ela tem de especificamente cultural (literário, filosófico, artístico), o estudo que a vincula unicamente ou em primeiro lugar ao seu autor, no estado atual das possibilidades de estudo empírico, dá-se conta, no melhor dos casos, de sua unidade interna e da relação entre o todo e suas partes: mas não poderia, em caso nenhum, estabelecer de maneira positiva uma relação do mesmo tipo entre essa obra e o homem que a criou. Neste plano, se se considerar o indivíduo como sujeito, a maior parte da obra estudada permanece acidental, e é impossível ultrapassar o nível das reflexões mais ou menos inteligentes e engenhosas." (p. 205)

Sob esse ponto de vista, pode-se afirmar que a explicação para o fato de determinado autor escrever uma certa obra, e não outra, não pode ser dada pela psicologia do autor, mas sim pela influência social que sofre. Esse fator social está refletido na estrutura da obra, não sendo possível se separar um da outra.

Alguns teóricos anteriores a Goldmann, que centravam seus estudos literários na sociologia, defendiam a ideia de uma influência da consciência coletiva sobre o escritor e sua obra. As pesquisas de Goldmann demonstram que a vida social é um processo coletivo que estrutura de forma equilibrada os fatores psíquicos e de ação. Isso é percebido em todas as formas de expressão do homem, inclusive na literatura, que deve, por um lado, não refletir a consciência coletiva ou, simplesmente, registrar a realidade, mas, ao criar no plano imaginário um universo cujo conteúdo pode ser de todo diferente do conteúdo da consciência coletiva e cuja estrutura é, no entanto, aparentada e mesmo homóloga à estrutura desta última, ela deve — repetimos — ajudar os homens a tomar consciência de si mesmos e de suas próprias aspirações afetivas, intelectuais e práticas.

Por outro lado e ao mesmo tempo, ela fornece aos membros do grupo, no plano imaginário, uma satisfação que deve e pode compensar as múltiplas frustrações causadas pelos compromissos e as inevitáveis inconsequências impostas pela realidade.

Outro conceito importante na teoria de Goldmann é o de consciência possível, que faz o contraponto com a consciência real. Segundo essa teoria, a maioria de nós estrutura seus pensamentos a partir das percepções que tem. Entretanto, muitas informações escapam de nossa percepção ou chegam a ela deformadas, determinando, assim, a forma de pensar característica de uma sociedade. Quando o indivíduo consegue alcançar um grau de percepção maior do que o da maioria das pessoas de sua sociedade, vai além da consciência real, alcançando essa consciência possível. É o que acontece com José de Alencar, que em seu texto “benção paterna”, na obra Sonhos d’ouro, “anuncia” um grande escritor para o Brasil do futuro (em relação à sua época), fato confirmado pelo surgimento, posteriormente, de Machado de Assis.

Outro pensador de grande importância nesse contexto foi Jean-Paul Sartre, que defendia uma arte engajada e definia a literatura como sendo a arte mais adequada ao engajamento, pois com ela, “o escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mostrar nele o símbolo das injustiças sócias, provocar nossa indignação. Já o pintor é mudo: ele nos apresenta um casebre, só isso; você pode ver nele o que quiser. Essa choupana nunca será o símbolo da miséria (…)”. (Sartre, p. 12) Artes como música ou pintura não podem exercer um poder conscientizador sobre o sujeito, portanto, não se apropriam ao engajamento.

Para Sartre, a poesia também, como as outras artes, é inadequada à tarefa conscientizadora porque, embora se sirva das palavras, como a prosa, o faz de outra forma:

"Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Ora, como é na linguagem e pela linguagem, concebida como uma espécie de instrumento, que se opera a busca da verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendem discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer. Eles tampouco aspiram a nomear o mundo, e por isso não nomeiam nada, pois a nomeação implica um perpétuo sacrifício do nome ao objeto nomeado, ou para falar com Hegel, o nome se revela inessencial diante da coisa — esta, sim, essencial. "(p 13)

O prosador é aquele que se serve das palavras para alcançar seus objetivos, o poeta, ao contrário, serve às palavras. O fator utilitário da prosa facilita o engajamento, pois a palavra possui uma natureza transformadora, já que revela o caráter dos indivíduos a si próprios e aos outros. “Falar e agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência.” (p. 20)

Os valores estéticos são importantes, mas “arte pela arte” serve apenas aos ideais burgueses, pois, em vez de transformar o sujeito através da conscientização, o mantém alienado. Segundo Sartre, escrever é uma ação de desnudamento. Não basta ao escritor ter escrito certas coisas, é preciso ter escolhido escrevê-las de um determinado modo, expondo seu mundo, com elementos estéticos.

O homem que escreve tem a consciência de revelar as coisas, os acontecimentos; de constituir o meio através do qual os fatos se manifestam e adquirem significado. Mesmo sabendo que, como escritor, pode detectar a realidade, não pode produzi-la; sem a sua presença, a realidade continuará existindo. Ao escrever, o escritor transfere para a obra uma certa realidade, tornando-se essencial a ela, que não existiria sem seu ato criador. “Um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo.” (p. 34) Segundo Sartre, o escritor deve estabelecer um pacto com o leitor para que a obra contribua para a transformação do mundo, da realidade. A liberdade é o bem maior do homem, para alcançá-la e mantê-la, é necessário uma consciência desperta. O papel do artista é contribuir para o despertar da consciência das pessoas.

Na contramão desse pensamento, posiciona-se Theodor Adorno, ao afirmar, em seu texto Lírica e sociedade, que a obra de arte literária não deve servir como demonstração de teses sociológicas, mas, contrariamente, deve utilizar-se do fator social para revelar sua qualidade essencial. Segundo esse pensador, a obra não deve expressar somente emoções e experiências pessoais, mas tornar-se arte na medida em que adquirir um caráter universal:

"Sua universalidade não é uma volonté de tous, não é a da mera comunicação daquilo que os outros, simplesmente, não são capazes de comunicar. Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ou universal porque põe em cena algo de não desfigurado, de não captado, de ainda não subsumido, e desse modo anuncia, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal postiço, ou seja, particular em suas raízes mais profundas, acorrente o outro, o universal humano." (ADORNO, p.194)

Entretanto, essa universalidade a que se refere Adorno, não pode ser confundida com aquela referida pelos metafísicos, cuja abstração nega o caráter social e dialético da obra, desconsiderando os elementos humanos e contraditórios que a compõe.

Comparando-se Hegel e Adorno, percebemos que no primeiro há uma concepção de lírica centrada em um conceito de totalidade, enquanto no segundo, pode-se observar uma tentativa de compreender uma certa fragmentação das formas e ruptura com as convenções tradicionais, que conduzem a uma desumanização da experiência social:

"Essa universalidade do conteúdo lírico, todavia, é essencialmente social. Só entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz da humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como, inversamente, sua postulação de validade universal vive da densidade de sua individuação. Por isso mesmo, o pensar da obra de arte está autorizado e comprometido a perguntar concretamente pelo conteúdo social, a não se satisfazer com o vago sentimento de algo universal e abrangente." (p. 194)

Adorno afirma que devemos tomar cuidado com o conceito de ideologia, pois esta é perigosa pelo fato de representar uma mentira ou consciência falsa. “Obras de arte (…) têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde. Seu próprio êxito, quer elas o ambicionem ou não, passa além da falsa consciência.” (p. 195)Com relação à critica de Sartre aos artistas que produzem a arte sem engajamento, Adorno posiciona-se defendendo a ideia de que não existe “arte pela arte”, ou seja, a arte mais descompromissada (aparentemente) é a que possui maior poder transformador da sociedade.

Walter Benjamin também fala de uma desumanização na arte. Essa, porém, é causada pela perda da natureza aurática das obras, resultado da quantidade imensa de reproduções existentes na atualidade. Embora hoje em dia se tenha um contato maior com as obras, por meio de cópias reproduzidas em livros, pôsteres e na Internet, entre outras fontes, perde-se o contato com a obra de arte propriamente dita. Em seu texto, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, Benjamin compara dois momentos distintos da arte, um religioso e o outro autônomo. O primeiro é identificado como aquele que possui o que o autor chama de “valor de culto”. O segundo refere-se ao momento em que a arte adquire “valor de exposição”. Partindo dessa análise, o autor introduz o conceito de aura, que seria a singularidade absoluta de um ser, natural ou artístico, sua condição de ser único, que tem sua autenticidade validada por um hic et nunc, ou aqui e agora que jamais poder-se-á repetir.

Inicialmente, no momento religioso da arte, citado acima, as obras tinham por objetivo sacralizar e divinizar o mundo, mostrando-o de forma transcendente, ao mesmo tempo em que tornava os deuses próximos dos homens, humanizando-os. Essa origem religiosa fez com que as obras de arte adquirissem uma qualidade aurática que permaneceu no segundo momento referido, em que deixaram de ter um vínculo com a religião. Assim sendo, o culto aos deuses foi substituído pelo culto ao belo, conservando o caráter aurático da obra de arte.

Entretanto, segundo Benjamin, na sociedade contemporânea, a aura da obra de arte foi destruída pelo desejo de quebrar a transcendência dos objetos artísticos, advinda do fato de serem, esses objetos, únicos e de encontrarem-se em locais onde poucos podiam contemplá-los. Por meio da reprodução técnica dos objetos artísticos, essa transcendência é rompida, já que as obras passam a ser produzidas em série. Em alguns casos, como na fotografia ou no cinema, por exemplo, até mesmo a ideia de original é rompida.

De acordo com essa teoria, a destruição da aura já preexiste na essência da obra de arte como algo possível, pois toda obra possui o valor de culto e o de exposição, sendo que este último estimula a reprodutibilidade. Benjamim encerra seu texto concluindo que “na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses do Olimpo: agora, ela faz de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem.” (p. 28) O autor defende uma saída através da politização da arte, alcançada pelo comunismo.



BIBLIOGRAFIA

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