Primeiras leituras de 2016


Não sou o tipo de pessoa que costuma estabelecer metas de leitura, mas tenho a minha lista de livros (cada vez maior) e procuro segui-la. Para começar 2016 mais organizada, defini as minhas sete primeiras leituras, as quais pretendo que sejam feitas ainda em janeiro. Espero que o ano que inicia traga muitas conquistas e, claro, muitas leituras a todos nós. Feliz 2016! 


Origem - Um segredo que pode ser a nossa destruição, de J.T. Brannan
A pesquisadora científica Evelyn Edwards e sua equipe descobrem um corpo de 40 mil anos enterrado sob a calota polar da Antártida. Mas, quando começam a extrair o corpo do gelo, o sonho se transforma em um horrível pesadelo, quando todos são marcados para a morte por alguém que quer manter enterrado esse segredo. Evelyn mal consegue escapar com vida. Ela pede ajuda a seu ex-marido Matt Adams, antigo membro de uma unidade de elite do governo. Logo eles se veem envolvidos em uma corrida alucinante contra o tempo, que os leva ao Grande Colisor de Hádrons, em Genebra, enquanto tentam desvendar a maior conspiração de todos os tempos, antes que seja tarde demais para a espécie humana. Se a humanidade achava que conhecia suas origens, chegou a hora de repensar tudo, por que todas as crenças estão a ponto de ser questionadas.

Hibisco Roxo, de Chimamanda Adichie
Protagonista e narradora de Hibisco roxo, a adolescente Kambili mostra como a religiosidade extremamente “branca” e católica de seu pai, Eugene, famoso industrial nigeriano, inferniza e destrói lentamente a vida de toda a família. O pavor de Eugene às tradições primitivas do povo nigeriano é tamanho que ele chega a rejeitar o pai, contador de histórias encantador, e a irmã, professora universitária esclarecida, temendo o inferno. Mas, apesar de sua clara violência e opressão, Eugene é benfeitor dos pobres e, estranhamente, apoia o jornal mais progressista do país. Durante uma temporada na casa de sua tia, Kambili acaba se apaixonando por um padre que é obrigado a deixar a Nigéria, por falta de segurança e de perspectiva de futuro. Enquanto narra as aventuras e desventuras de Kambili e de sua família, o romance também apresenta um retrato contundente e original da Nigéria atual, mostrando os remanescentes invasivos da colonização tanto no próprio país, como, certamente, também no resto do continente.

Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri
Vencedora do Prêmio Pulitzer de melhor ficção, a coleção de contos de estreia de Jhumpa Lahiri marcou, em 2000, sua entrada no mundo da literatura. Além disso, Intérprete de males também faz parte de uma primeira leva de certo tipo de literatura que tem ganhado cada vez mais espaço nas livrarias de todo mundo e cujos olhos estão voltados para a vivência entre duas culturas distintas, e para as relações determinadas por este processo: o exílio, a saudade, o desarraigamento, a inadequação, a esperança, a adaptação. A autora, uma das vozes mais importantes da literatura em língua inglesa, é convidada da Flip em 2014.
Nos nove contos que compõem o livro, o leitor verá sempre certo incômodo, certa maneira de estar num lugar de um modo desconfortável, uma espera sem nome e sobressaltos do entendimento desse processo. (...)

Sua voz dentro de mim, de Emma Forrest
Aos 22 anos, a jornalista, escritora e roteirista Emma Forrest havia trocado Londres por Nova York. Por trás do aparente sucesso, havia uma jovem autodestrutiva. Reunindo as memórias de Emma desde a infância, passando pelo complicado relacionamento com o ator Colin Farrell, que a levou finalmente a buscar ajuda, até as sessões com o discreto Dr. R - psiquiatra que a salvou e que morreu de câncer em meio ao tratamento de Emma -, Sua voz dentro de mim é um relato sincero e corajoso. O livro recebeu críticas positivas e a história chegará aos cinemas com Emma Watson e Stanley Tucci.


Os olhos do condenado, de Fernando Bins
Quando Felipe Teixeira – o jovem de olhar descontraído, apaixonado por poesia, blues e vinho tinto – é preso por um crime o qual não é culpado, ele é somente uma vítima? E quando ele rebate ao sistema opressor da penitenciária e se torna igualmente perverso em um plano de vingança, ele é simplesmente culpado? O que fazer, então, quanto tudo que lhe resta é uma cela, contendo apenas um beliche com colchões surrados, uma pequena fissura na parede coberta por grades e que insistem em chamar de janela, e a ruptura total com sua identidade e com os ideais os quais carregou por toda a vida até que os muros da penitenciária lhe limitassem o mundo? Em “Os olhos do condenado” o escritor Fernando Bins nos arrasta junto com nosso protagonista até as mais perversas e naturais faces de um homem a um novo modelo de sociedade e aos mais assombrosos fantasmas que a humanidade poderia apresentar.

A 5ª Onda , de Ricky Yancey
A Terra repentinamente sofre uma série de ataques alienígenas.
Na primeira onda de ataques, um pulso eletromagnético retira a eletricidade do planeta. Na segunda onda, um tsunami gigantesco mata 40% da população. Na terceira onda, os pássaros passam a transmitir um vírus que mata 97% das pessoas que resistiram aos ataques anteriores. Na quarta onda, os próprios alienígenas se infiltram entre os humanos restantes, espalhando a dúvida entre todos.
Com a proximidade cada vez maior da quinta onda, que promete exterminar de vez a raça humana, a adolescente Cassie Sullivan (Chloe Grace Moretz) precisa proteger seu irmão mais novo e descobrir em quem pode confiar.

Cordilheira, de Daniel Galera
Recém-saída de um relacionamento amoroso e ainda sob o impacto do suicídio de uma amiga, uma escritora resolve aproveitar o lançamento da tradução argentina de seu romance para passar uma temporada em Buenos Aires. 
Primeiro título da coleção Amores Expressos, em que autores brasileiros escrevem histórias de amor ambientadas em diversas cidades do mundo, 'Cordilheira' gira em torno de um recomeço: ao se envolver com um misterioso fã argentino e conviver com seus amigos de hábitos bizarros, a protagonista começa a deixar o passado para trás e a se tornar algo que ainda não sabe bem o que é. Diferentemente dos romances anteriores de Daniel Galera, a perspectiva não é a do universo masculino, e sim a de uma narradora sem receio de encarar os próprios abismos emocionais.
'Tive vontade de desenvolver uma protagonista mulher', explica o autor, 'porque as mulheres modernas me parecem bem mais interessantes e complexas do que os homens. A decisão de narrar o livro em primeira pessoa só veio mais tarde, depois da viagem a Buenos Aires, quando comecei a escrevê-lo.'
Além de uma história de perdas, encontros e desencontros, 'Cordilheira' também é uma reflexão sobre vida e arte, seus limites nem sempre definidos e a maneira como essa sobreposição, em meio aos sonhos e impasses de quem cedo ou tarde precisará enfrentar a realidade, pode acabar mudando os destinos individuais.


Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles: um conto de renascimento


Natal na Barca está entre os meus contos preferidos por retratar metaforicamente o que o Natal representa: renovação. O conto mostra uma protagonista descrente, triste e completamente sem esperanças em relação à vida, e após uma experiência marcante e inacreditável, algo se transformará dentro dela. 

A história se passa em uma barca que faz a travessia de um rio na noite de Natal. Faziam a viagem, além da narradora, um bêbado e uma mulher com um manto escuro cobrindo-lhe a cabeça e carregando uma criança no colo. Depois de algum tempo estabeleceu-se um diálogo entre as duas mulheres e a narradora soube que a outra perdera um filho e que fora abandonada pelo marido. A mulher contou-lhe também que estava naquela barca porque precisa levar seu bebê ao médico, pois a criança estava doente. A simplicidade e a fé da mulher do manto chamaram a atenção da narradora, que demonstrava ser uma pessoa descrente. Em um determinado momento a narradora levanta o xale que cobre o menino e constata que ele está morto, mas não diz nada à sua mãe. Ao terminar a viagem ela só pensa em descer da barca e ir embora para fugir daquela situação. Porém, algo surpreendente acontece, algo que mudará para sempre a vida dessa mulher tão descrente. 

A mulher do manto e o bêbado são personagens secundários. Em um sentido psicológico estas personagens têm bastante importância, pois o bêbado representa um aspecto negativo do lado masculino da narradora, do seu animus e a mãe da criança representa sua sombra, aspectos de sua psique com os quais ela tinha perdido contato e que se mantinham no seu inconsciente. A criança também tem sua importância, pois representa o seu lado criativo esquecido, deixado de lado por possíveis decepções que podem ser representadas pela morte do primeiro menino, o mágico, que morreu justamente quando tentava "voar", ou seja, realizar seus sonhos. A narradora deixara de ver o lado mágico da vida. 

O tempo não é determinado no conto, tudo o que sabemos é que a história se passa na noite de Natal na travessia de um rio. Não sabemos, porém, quanto tempo levou essa travessia. Poderia ter sido meia hora ou a noite inteira. O conto Natal na Barca é um exemplo de narrativa em que o espaço é fundamental, pois é determinante para que possamos compreender o seu significado. A barca, na mitologia, representa a passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. E nesse conto possui um significado parecido, pois representa, para a protagonista, uma morte e um renascimento simbólicos. A passagem de um estado de profunda desesperança a outro em que começa a acreditar no futuro, em que suas esperanças renascem. 

Outro elemento importante do espaço é a vestimenta da mulher do manto, simples e despojada, porém, revestida de dignidade, simbolizando o que a narradora possui de melhor e mais puro em seu interior. O manto da mãe da criança remete-nos à ideia de agasalho e aconchego, coisas que a narradora parecia precisar. Há uma ligação entre as duas mulheres, pois a morte seguida de renascimento que a protagonista vive simbolicamente no conto, a mulher do manto já viveu com a morte de seu filho mais velho, até que, depois de uma noite escura, reencontra o menino em sonho e sente-se nova, com o sol batendo em seu rosto. É um conto belíssimo para quem acredita na regeneração de uma alma sofrida, na esperança e no futuro. E para quem acredita, sobretudo, em um final feliz.


Um conto de Natal, de Charles Dickens - Editora L&PM

Em uma noite de Natal, no frio londrino, todos se preparam, com euforia, para comemorar o nascimento do menino Jesus. Todos felizes aguardando a troca de presentes e a alegria do convívio com a família. Menos o velho Scrooge, que lamenta profundamente porque, além de não se comover com o espírito natalino, terá que conceder uma folga ao seu secretário. Scrooge é um homem rabugento, mesquinho e avaro, que não sente prazer algum em doar algo de si ao próximo. 

Todavia, o que ele mal sabe é que sua vida e sua visão de mundo estão prestes a mudar, pois o velho ranzinza receberá, na noite de Natal, a visita de Marley, fantasma de seu falecido sócio, que, completamente arrependido de ter desperdiçado sua vida atrás de dinheiro, o guiará por uma viagem surreal ao passado e ao futuro, para retornar ao presente completamente transformado.

O livro é simplesmente tocante, e está entre os melhores textos literários (se não é o melhor) que abordam o Natal como tema. A obra foi escrita em 1843, e faz sucesso desde então, tendo recebido durante esse tempo, inúmeras adaptações de todo tipo: cinema, teatro, HQs, animações, etc. Recomendo a leitura a todos que apreciem uma obra que, além de escrita lindamente, possui uma mensagem edificante.


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Eis o Natal: crônica




Reza a tradição, que o Natal é tempo de amor fraterno e solidariedade. No entanto, os Natais dos últimos anos não têm sido mais os mesmos. Não sei se foram eles que mudaram ou eu, mas lembro-me de um tempo em que, embora ainda não se tivesse o hábito de enfeitar as fachadas das casas, as noites de dezembro, quando se esperava ansiosamente por Papai Noel, eram bem mais luminosas e mágicas do que hoje em dia. Nessa época, não havia crises econômicas, preconceitos étnicos, intransigências políticas e religiosas, crianças abandonadas e outras coisas igualmente tristes. Não existia descaso e indiferença às dores alheias. Um tempo em que se doar era algo natural. Ao menos, eu, na minha gentil infância, assim enxergava.

Recordo-me bem do ano em que esta visão de mundo foi posta em xeque, quando passei a, não só perceber as desigualdades com a cabeça, mas a senti-las com o coração, quando distingui o real sentido da palavra solidariedade. Foi o primeiro Natal que minha família e eu passamos depois da morte de meu pai. Descobrimos um grupo de voluntários anônimos que se reuniam para levar um pouco de conforto aos moradores das rua. Passamos os dias 23 e 24 inteiros organizando pratos com guloseimas para serem distribuídos na noite de Natal. Dividimos a cidade de Porto Alegre em regiões. Separamo-nos em grupos e saímos para distribuir os pratinhos já prontos. O meu grupo ficou com uma região no centro da cidade que inseria a Praça da Matriz. Fui, cheia de sonhos juvenis, viver aquela que seria uma das experiências mais marcantes da minha vida. Era uma dessas noites em que, embora sendo entrada de verão, por um capricho da natureza, são muito frias. Tomamos o cuidado de levar muito chocolate quente em várias garrafas térmicas. Entrei em contato com um mundo que desconhecia completamente. Homens e mulheres que rolam pelas ruas, não só nas noites de natal, mas em todas as outras de suas vidas.

Em frente à Igreja da Matriz, havia dois mendigos comendo em um pratinho e tomando um copo de chocolate quente daqueles que estávamos distribuindo. Estranhamos, pois ainda não havíamos passado por ali. Então, perguntamos a eles se algum voluntário, responsável por outra região, teria lhes dado o lanche. Eles responderam que não. O que aconteceu foi que um deles estava dormindo na Praça XV quando fora acordado pelo grupo que havia ficado responsável por aquela região. O homem, então,  logo lembrou-se do amigo que estava na Praça da Matriz sem ter o que comer. Pegou o pratinho e o copo de chocolate quente, foi até onde se encontrava o companheiro de fome e dividiu com ele sua singela ceia de Natal.

A solidariedade do mendigo para com seu amigo e companheiro de infortúnio tocou uma notinha diferente, mais delicada, dentro mim. Mas também não pude deixar de constatar quão curiosa é a natureza humana. Enquanto seres da mesma espécie, tendo muito, sofrem tanto para doar um pouco, outros são capazes de dividir um mínimo, mesmo na mais completa penúria. E o mais curioso é que estes últimos precisam dividir o seu pouco porque os primeiros não abrem mão de acumular o seu muito. Ainda acho que a solidariedade está entre os mais belos sentimentos de que é capaz um ser humano, mas acredito, também, que o mundo, e os Natais em consequência, seriam bem melhores se não precisássemos ser solidários. A necessidade desse sentimento mostra as deficiências de nossa sociedade tão “boazinha”. Por isso, creio que jamais voltarei a enxergar as festas de fim de ano como enxergava em outros tempos, pois, embora ainda haja pessoas solidárias nos Natais, infelizmente, sempre haverá outras que não têm um mínimo de sentimento fraterno durante todo ano.

Texto originalmente publicado no Scribe.

Deuses, Heróis e Monstros: belíssima adaptação de histórias mitológicas - Editora L&PM

Deuses, Heróis e Monstros: belíssima adaptação de histórias mitológicas - Editora L&PM
Deuses, Heróis e Monstros, de A. S. Franchini e Carmen Seganfredo, é um livro infantojuvenil que traz dez historias da mitologia adaptadas para que possam ser compreendidas pelo público mais jovem. Comprei o livro pensando no meu sobrinho, que tem 11 anos e, como geralmente acontece com os meninos, adora histórias de deuses mitológicos e monstros. Claro que não resisti e li a obra. Que grata surpresa! O livro é excelente, muitíssimo bem escrito e todo ilustrado. Embora as ilustrações não sejam coloridas, são muito bem feitas e causam ótima impressão. 

O que mais me chamou a atenção foi o fato de que o livro pode ser muito interessante, também, para o público adulto, pois embora tenha sido escrito de uma forma acessível aos leitores infantojuvenis, a linguagem utilizada não tem nada de infantilizada. Recomendo a leitura aos jovens, mas também aos adultos, especialmente os que não conhecem muito sobre mitologia, mas pretendem se iniciar neste tipo de leitura. 

A escolha das dez histórias mitológicas que compõem a obra foi perfeita. A primeira conta o nascimento da deusa Vênus, a mais bela de todas. Na sequência, podemos conhecer um pouco mais sobre Eco e Narciso, e sobre o rei Midas, cujo toque transforma tudo em ouro. Há, ainda, a história da caixa de Pandora, de Perseu e a cabeça da Medusa, Teseu e o Minotauro, entre outras. Todas fantásticas! Mas a minha preferida, dentre todas, é Cupido e Psiquê, uma linda história de amor e superação, cheia de significados simbólicos, capaz de tocar profundamente o coração de todos que amam ou já amaram, e que sabem que, muitas vezes, o amor nos faz ir ao Inferno e voltar.

Deuses, Heróis e Monstros: belíssima adaptação de histórias mitológicas - Editora L&PM

Antologia poética, de Mario Quintana - Editora Nova Fronteira

A coleção  Saraiva de Bolso é uma parceria da Livraria Saraiva e da Editora Nova Fronteira e é um projeto do qual gosto muito, pois a coleção é composta por obras de altíssimo nível ofertadas a um preço bastante acessível. Embora trate-se de publicações populares, as edições apresentam uma qualidade muito boa. Eu, particularmente, sou fã dessas iniciativas que, em um país onde os livros são tão caros, aproximam obras e leitores, facilitando a aquisição de exemplares. E as capas dos livros são maravilhosas em sua simplicidade, trazendo sempre uma caricatura do autor. Adoro!

Gostei muito de ter encontrado, entre os títulos desta coleção, a Antologia Poética, de Mario Quintana. Quem me conhece sabe que este é um dos meus poetas favoritos. Inclusive, já havia escrito sobre ele aqui. Gosto muito desta antologia do Quintana porque, embora não seja um livro muito extenso, nele estão presentes muitos dos melhores poemas do autor. Nenhum dos poemas que compõem o livro foram novidade para mim, pois já havia lido todos, mas ainda assim, foi muito gratificante reler estas pérolas, das quais gosto tanto. Recomendo o livro para todas as almas sensíveis e de bom gosto. Abaixo deixo uma prévia do que encontramos n obra.

Da Vez Primeira...

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!”

Vídeo que fala sobre o processo de criação das capas.

TAG sobre hábitos de leitura


Não tenho o hábito de responder a TAGs, mas vi essa no blog Pieces of Alana Gabriela e gostei bastante, por tratar da questão de hábitos de leitura, então resolvi responder. Vamos às perguntas?


1 – Quando você lê (manhã, tarde, noite, o dia inteiro ou quando tem tempo)?
Leio sempre que tenho tempo, em qualquer horário, mas tenho preferência pelas leituras feitas de madrugada, pois o silêncio favorece bastante. Também gosto de acordar pela manhã, aos domingos ou feriados, e ficar lendo por algum tempo, antes de levantar.

2 – Você lê apenas um livro de cada vez?
Não, sou do tipo que lê dois ou três livros ao mesmo tempo. Claro que sempre tem um que desperta mais interesse e acabo lendo mais rápido.

3 – Qual seu lugar favorito para ler?

Leio em qualquer lugar, até na fila do banco, afinal, com a nossa vida tão corrida, precisamos otimizar o nosso tempo. Mas o meu lugar preferido é na minha poltrona, no meu quarto. Posso ficar lendo por horas nesse meu lugar “sagrado”.

4 – O que você faz primeiro: lê o livro ou assiste ao filme?
Tanto faz. Não sou do tipo que se incomode com as adaptações, pois acho que cinema e literatura são linguagens muito diferentes e devem ser apreciadas de forma diferente, cada uma de acordo com as suas particularidades. Também não acho que o filme deva ser exatamente igual ao livro, afinal, o filme representa a leitura que o diretor fez da obra, e a leitura dele pode ser diferente da minha. 

5 – Qual o formato de livro você prefere (áudio-livro, e-book ou livro físico)?
Claro que prefiro os livros físicos, mas vivemos em um tempo em que (inclusive por motivos financeiros) precisamos nos adaptar e ler também os livros virtuais. Apenas procuro tomar cuidado em relação aos direitos autorais. Acredito que os autores devem receber pelo seu trabalho. Então, só baixo livros em domínio público ou autorizados pelo autor. Também temos a opção de compra de e-books por um preço bem mais em conta do que os livros físicos.

6 – Você tem algum hábito exclusivo ao ler?
Gosto muito de ler ouvindo música e, por incrível que pareça, concentro-me bem mais assim. Também gosto de tomar um café ou um chá enquanto leio. 

7 – As capas de uma série tem que combinar ou não importa?
Claro que eu aprecio capas bonitas, mas não acho que isso seja o essencial. O que mais importa é a obra em si. Portanto, se as capas de uma série não combinarem, mas o conteúdo for de qualidade, para mim está ótimo

Esses são os meus hábitos de leitura, espero que gostem!

Quatro Negros, de Luís Augusto Fischer - Editora L&PM

Quatro Negros, de Luís Augusto Fischer - Editora L&PMA obra Quatro Negros, de Luís Augusto Fischer, traz-nos um narrador que se apresenta ao leitor como um escritor renomado. Sua tarefa é contar a história de uma menina negra chamada Janéti (Sim, a grafia é essa, com acento e a letra "i" no final). A linguagem utilizada pelo narrador se dá em um tom informal, como se fosse uma conversa entre ele e o narratário. Durante o transcorrer da narrativa, a  história da garota, que é a principal, vai se cruzando com a de outros três negros, tão pobres quanto Janéti. E é essa pobreza e a falta de perspectivas quanto ao futuro que dá o tom da narrativa. 

Janéti pertence a uma família cujos pais sempre doam os filhos, mantendo consigo apenas o mais novo. Isso é feito com toda a naturalidade do mundo. Mas a menina mostra-se, desde muito pequena, uma inconformada, sempre voltando para casa, até que os pais desistem de doá-la. Conforme vai crescendo, ela vai buscando manter contato com os irmãos doados. Quando os pais decidem mudar do interior do Rio Grande do Sul para Porto Alegre, em busca de uma vida com mais oportunidades, Janéti os surpreende reunindo todos os irmãos na rodoviária para que possam recomeçar todos juntos. Os pais acabam por aceitar e mudam-se todos para a capital.

Essa não é uma história sobre a qual se possa falar muito sem correr o risco de praticar spoiler, mas o que posso dizer é que tornei-me fã de Janéti e de sua determinação em não se sujeitar ao destino que lhe é imposto. O livro Quatro Negros é fininho, de leitura rápida, mas muito rico em significado, trazendo um reflexão profunda sobre a miséria e as desigualdades sociais. Isso é feito de forma leve e agradável, como uma conversa despretensiosa. O narrador brinca com as diversas possibilidades narrativas, desacomodando, por vezes, o leitor. É um livro para se ler em um dia e se pensar durante vários outros.

Quatro Negros, de Luís Augusto Fischer - Editora L&PM

Crime e Castigo, de Dostoiévski: uma história de regeneração - Editora Martin Claret

Crime e Castigo, de Dostoiévski: uma história de regeneração - Editora Martin Claret
A obra Crime e castigo, de Dostoievski, tem como protagonista um jovem estudante de direito que muda para uma cidade grande a fim de frequentar a universidade. Não possui recursos financeiros e vive em uma pensão decadente recebendo ajuda da mãe e da irmã. Ródion Românovitch Raskolnikof havia parado com seus estudos por razões financeiras e já não tinha meios de pagar a pensão onde morava. Um dia, ouvindo uma conversa entre dois cavalheiros, na qual um deles dizia que a velha usurária Alena deveria ser assassinada, pois era uma pessoa desprezível e tratava muito mal a irmã Isabel, Ródion concebeu o seu plano. 

Após algum tempo de isolamento e premeditação, Raskolnikof assassinou Alena com machadadas na cabeça, e como Isabel chegasse quando ele ainda estava no local do crime, matou-a também. Roubou alguns objetos e dinheiro da velha, porém não deu importância alguma a isso, escondendo o produto do seu roubo embaixo de uma pedra. Após o crime, ele adoeceu e foi cuidado por seu amigo Razumikine e o médico Zózimof. Ao receber uma intimação, Raskolnikof foi, mesmo doente, ao comissariado para ver do que se tratava e, lá chegando, constatou que a dona da pensão onde morava estava reclamando os aluguéis atrasados. Durante a sua estada no comissariado, ouviu comentarem sobre a morte da velha e sua irmã e, não aguentando, passou mal e desmaiou. Tal atitude fez com que começassem a desconfiar dele.

Certa vez, após voltar ao local do crime e levantar suspeitas nas pessoas que estavam presentes, resolveu ir ao comissariado, porém foi desviado de seu destino ao encontrar Marmêladof, o seu amigo alcoólatra, atropelado na rua. Como ninguém mais o conhecesse, levou-o para casa e disse a Catarina, sua esposa, que chamasse um médico, pois ele estava disposto a pagar tudo. Marmêladof acabou por morrer e isto fez com que as relações entre Raskolnikof e a família do morto se estreitassem, pois o jovem ofereceu-se para pagar as despesas do funeral e, para isso, deu a Catarina todo o dinheiro que ganhara de sua mãe. 


Raskolnikof resolve contar sobre o crime a Sônia, filha de Marmêladof, porém, não imagina que Svidrigailof, homem casado que pretende seduzir a sua irmã, está escutando atrás da porta. Sônia desespera-se e pede a ele que se entregue. Na casa de Sônia, Svidrigailof demonstra a Raskolnikof que sabe de toda da verdade. Ródion procura Svidrigailof, que tenta esconder-se, mas não consegue. Conversam longamente e Raskolnikof percebe que o outro tenta livrar-se dele, e então o segue. Mas Svidrigailof consegue enganá-lo e fica sozinho para procurar Dúnia, irmã de
Raskolnikof. Os dois encontram-se na rua, mas Svidrigailof convence a moça a ir até o seu quarto. Lá chegando, ele conta sobre o crime de seu irmão e tenta possuí-la com chantagem, mas ela resiste e ele acaba por desistir, suicidando-se horas depois, mas não sem antes resolver o problema dos órfãos de Marmêladof e dar uma boa quantia em dinheiro para Sônia.

Por se tratar de uma obra da literatura russa, o mais difícil é não se confundir com tantos nomes diferentes dos personagens e, como se isso não bastasse, cada personagem tem vários nomes. Fora isso, o livro é fantástico no sentido de mostrar um raio-X da alma humana. Os personagens são extremamente complexos do ponto de vista psicológico e, mesmo o mais cruel ou degenerado, em algum momento mostra algo de bom, como Raskolnikof, que mata uma velha a machadadas, mas doa todo o seu dinheiro à viúva de Marmêladof para que ela faça o funerak do marido; ou como Svidrigailof, que tenta abusar de Dúnia, chantageando-a, mas antes de morrer ajuda financeiramente os órfãos. Por se tratar de uma obra realista, não podemos esperar finais extremamente felizes, ainda assim, o final da obra traz uma mudança que acontece de modo sutil em Raskolnikof, que pode ser interpretada como uma forma realista de regeneração. A obra é belíssima, está entre as minhas melhores leituras. Recomendo 
Crime e castigo para quem gosta de narrativas com forte teor psicológico.


Crime e Castigo, de Dostoiévski: uma história de regeneração - Editora Martin Claret


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Peter Pan, de James Barrie: leitura para pais e filhos - Editora Zahar

Peter Pan, de James Barrie: leitura para pais e filhos - Editora ZaharPeter Pan, a obra infantojuvenil de James Barrie, é um presente aos amantes da fantasia. Escrita com profunda sensibilidade e um senso estético apurado, a narrativa desperta o interesse, não apenas de crianças e adolescentes, mas de adultos também. Na Inglaterra, a família Darling adotou a cadela Naná para ser babá de seus três filhos, Wendy, João e Miguel. Certo dia, as crianças, que já haviam comentado com a mãe sobre a Terra do Nunca, falam de Peter Pan, um dos meninos que vivem naquele local. Em uma noite, ao dormir sentada no quarto das  crianças, a senhora Darling acordou assustada e viu Peter Pan entrando pela janela, acompanhado da fada Sininho.

A um grito da Senhora Darling, Naná entra na peça e o menino foge pela janela, mas a cachorra segura sua sombra entre os dentes, guardando-a, dobrada, dentro de uma gaveta para que seu dono venha buscá-la. Numa noite em que o casal tinha saído, Peter Pan e Sininho entram no quarto das crianças à procura da sombra. Encontram-na mas Peter Pan não consegue colá-la e começa a chorar. Wendy acorda e ajuda-o, costurando a sombra de volta ao seu corpo. Os dois conversam e Peter Pan revela que passa a maior parte do tempo com os meninos perdidos na Terra do Nunca, dos quais ele é o chefe. Explica que eles são meninos que caem dos carrinhos e, como não são reclamados em sete dias, vão para a Terra do Nunca. Ele convence Wendy a ir com ele contar histórias aos meninos perdidos, levando seus irmãos, e ensina a todos a voar. Naná, que tinha farejado o quarto das crianças com desconfiança, avisa aos pais que algo estranho está acontecendo lá. 

De volta ao lar, o casal vê quatro figurinhas flutuando no quarto, mas quando eles chegam as crianças já estão voando lá fora. Enquanto Peter Pan e os meninos voavam, sua aproximação começou a ser sentida na Terra do Nunca, onde tudo costumava ficar muito tranquilo quando ele não estava. Aos poucos a ilha começou a acordar e os meninos perdidos procuravam Peter, os piratas procuravam os meninos perdidos, os índios procuravam os piratas e as feras procuravam os índios. Capitão Gancho procura especialmente por Peter Pan, que um dia em uma briga decepou-lhe a mão direita, atirando-a a um jacaré que passava. A partir daquele dia, o jacaré o persegue por todos os lugares para comê-lo, podendo ser identificado a uma certa distância pelo tic-tac do relógio que engoliu junto com a mão; enquanto o relógio tiver corda fará aquele ruído e será como um aviso para o Capitão Gancho ter tempo de fugir. 

Na Terra do Nunca, os personagens vivem inúmeras aventuras. É um lugar em que as crianças jamais se tornarão adultos, e os meninos que lá vivem, acreditam que não vale a pena voltar para casa, que as mães não esperam por eles. Mas Wendy contesta, dizendo que sua mãe deixou a janela aberta para que ela e os irmãos voltem. No entanto, sente-se insegura, com vontade de retornar ao lar. Eis a grande decisão que as crianças precisam tomar: voltar para casa e correr o risco de encontrar a janela fechada, ou continuar na Terra do Nunca sem jamais crescer. A obra trata, de forma lúdica, das angústias e inseguranças pelas quais todos passamos ao crescer. Recomendo o livro, sobretudo para pais que queiram fazer uma boa leitura junto com os filhos.

Peter Pan, de James Barrie: leitura para pais e filhos - Editora Zahar

Reze pelas mulheres roubadas, de Jennifer Clement - Editora Rocco

Reze pelas mulheres roubadas, de Jennifer Clement - Editora RoccoEm uma aldeia nas montanhas, no estado de Guerrero, México, vive a pequena Ladydi Garcia Martínez e sua mãe. A miníscula aldeia é composta basicamente de mulheres, crianças e escorpiões. Os homens vão todos deixando a aldeia em busca de uma vida melhor para suas famílias, e geralmente atravessam a fronteira com os Estado Unidos atrás de trabalho. Costumam enviar dinheiro para as esposas no início, mas por fim, muitos deles acabam sumindo de vez e constituindo nova família nos Estados Unidos. Então, as mulheres acabam tendo que lutar pela sobrevivência sozinhas. 

Muito triste, não? Mas isso não é o pior! Essas mulheres precisam proteger as suas jovens filhas dos narcotraficantes que roubam as meninas para transformá-las em escravas sexuais. Dificilmente uma menina roubada retornará para casa, pois quando o seu dono cansar dela, sempre poderá vendê-la para outro narcotraficante e, dessa forma, a mesma mulher pode ser vendida muitas vezes.

As mulheres da aldeia criam as meninas como se fossem meninos, até certa idade, e quando não dá mais para esconder a natureza feminina das jovens, elas começam a ser enfeiadas, quanto mais feias forem, melhor, pois serão menores as chances de serem roubadas. Além disso, as mães fazem buracos no chão para esconderem as suas filhas assim que percebem a presença dos raptores. As meninas precisam ficar, por vezes, horas a fio escondidas em um buraco, na presença de escorpiões, para fugir do triste destino de tornar-se uma das tantas mulheres roubadas. 

Paula, uma das melhores amigas de Ladydi, é a menina mais bonita da aldeia, e não consegue tornar-se feia, apesar dos esforços de sua mãe, e um dia é levada. Entretanto, a menina consegue fugir e volta para casa depois de um ano. Obviamente, a jovem já não é mais a mesma, traz consigo marcas da experiência vivida. Uma dessas marcas é uma tatuagem em que se lê "garota do canibal", além de algumas queimaduras de cigarros. Paula em, estado de choque, chega a relatar alguns fatos ocorridos durante o seu cativeiro, mas depois de algum tempo, ela e sua mãe fogem da aldeia para evitar que a menina seja levada novamente. Ladydi acaba sendo presa injustamente e, na prisão, fica sabendo de mais alguns detalhes sobre o infortúnio de Paula.

Claro, trata-se de uma narrativa ficcional, mas o mais chocante é que essa ficção foi elaborada a partir de entrevistas feitas pela autora, durante mais de dez anos, com mulheres que vivem nas regiões mais violentas do México, e que passam por situações semelhantes. Apesar de abordar um tema tão pesado, Jennifer Clement brinda-nos com uma obra de leitura agradável, conseguindo, por vezes, mostrar o lado cômico de algumas situações, sem deixar de tratar o tema com seriedade. O livro é muito bem escrito e, na minha opinião, um de seus principais méritos consiste em trazer a público uma situação que, apesar de  extremamente séria, é desconhecida por muitos.

Reze pelas mulheres roubadas, de Jennifer Clement - Editora Rocco

Aguapés, romance de Jhumpa Lahiri - Editora Globo

Aguapés, romance de Jhumpa Lahiri - Editora Globo
Jhumpa Lahiri, ou se preferirmos chamá-la pelo seu nome verdadeiro, Nilanjana Sudeshna, é uma escritora de origem indiana, nascida em Londres e criada nos Estado Unidos, o que a faz considerar-se americana. Casada como o jornalista Alberto Lahiri Vourvoulias-Bush, vive na Itália com o marido e com os dois filhos. Com sua obra de estreia, Intérprete de Males, a autora ganhou o prêmio Pulitzer, em 2000. 

O romance intitulado Aguapés, publicado pelo Selo Biblioteca Azul da Editora Globo, conta-nos sobre dois irmãos da família Mitra, Subhash e Udayan, nascidos e criados em Calcutá, na Índia. Companheiros inseparáveis na infância, ao tornarem-se adultos, seguem caminhos distintos. Udayan envolve-se com um movimento que pretende a libertação do povo, que teve seu início na década de 1960 e  constitui-se em um conflito armado entre o governo indiano e o grupo maoísta conhecido como naxalita. O jovem torna-se terrorista e perseguido pela polícia. Subhash, ao contrário, segue para os Estados Unidos para fazer o seu doutorado, e de lá só retornará em visita, em situações bem específicas. Constrói sua vida na América, termina o doutorado, faz pós-doutorado e segue carreira acadêmica.

Aguapés, romance de Jhumpa Lahiri - Editora Globo

Ao despedirem-se, os dois irmão não sabem que o destino os separará para sempre, que nunca mais se verão. Assim como não sabem que, esse mesmo destino que os separará, ligará os dois para sempre através de uma mulher e de uma criança. A mulher é a jovem Gauri, estudante de Filosofia, uma intelectual dotada de grande inteligência, que carrega em seu ventre a filha de Udayan, Bela. Uma mulher que carrega consigo uma culpa que a assombra. Uma mulher que, apesar de grávida, não foi feita para a maternidade. 

Entre tantos encontros e desencontros, os personagens vivenciarão situações de dor, de abandono, de rejeição, mas também de amor, de lealdade e de dedicação. É uma obra primorosa, lindamente escrita, que explora com maestria o humano em sua essência. Mais que recomendo Aguapés, de Jhumpa Lahiri.

Aguapés, romance de Jhumpa Lahiri - Editora Globo

A senhora Beate e seu filho, de Arthur Schnitzler: entre o amor materno e o incesto - Editora L&PM

A senhora Beate e seu filho, de Arthur Schnitzler: entre o amor materno e o incesto - Editora L&PM
O incesto é um tema que, ao mesmo tempo em que causa horror, provoca interesse, o que pode ser facilmente confirmado se pensarmos na curiosidade que despertam as obras que tratam do assunto. Algumas se ocupam de relações incestuosas entre mãe e filho, como a tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles; outras narram relacionamentos proibidos entre irmãos, como Os Maias, de Eça de Queirós, história na qual dois jovens que desconheciam o parentesco que os unia tornam-se amantes, mantendo o relacionamento após a descoberta dos laços consanguíneos; ou, ainda, a obra de Helder Macedo, intitulada Pedro e Paula, na qual um rapaz sofre o tormento de um desejo reprimido por sua irmã, o que termina por levá-lo a cometer o estupro. A obra A senhora Beate e seu filho, do escritor austríaco Arthur Schnitzler, é um caso em que há desejos incestuosos, mas estes se dão em um nível inconsciente, mascarados de zelo materno. São sentimentos inconscientes de incesto de uma mãe em relação ao filho. 

Após a morte do marido, Beate viveu durante alguns anos sem nenhum envolvimento emocional, dedicando-se somente ao filho, o jovem Hugo. Apesar desse isolamento, podemos perceber, através de certas pistas que vão sendo deixadas pelo caminho, que se trata de uma mulher com uma sexualidade bastante intensa. Os instintos reprimidos de Beate são como animais selvagens que não se deixam aprisionar por muito tempo e ela, aos poucos, começa a tomar conhecimento de que seus desejos ainda existem. Em alguns momentos a viúva respeitável se vê em meio a certos jogos de sedução que, aos poucos, lhe vão revelando que já não poderá mais ignorar sua própria natureza. Nessa luta entre a própria animalidade e o amor materno, entre natureza e civilidade, a protagonista encontra em Fortunata, mulher de reputação suspeita, a imagem de tudo o que ela tenta negar em si mesma e, então, resolve “proteger” o filho de uma mulher tão inadequada. Dentre as possíveis explicações de estudiosos para a aversão ao incesto está a de que, ao abrir mão de filhos e irmãos, afirma-se a possibilidade de relação com todas as outras pessoas com as quais não se tem laços de consanguinidade e, de uma forma inconsciente, Beate parece “ceder” Hugo a Fortunata a partir do momento em que inicia o seu relacionamento com o jovem Fritz Weber e deixa o filho mais livre.

O livro é fortemente marcado por um sentimento de perda da juventude e pelo sonho de retorno a ela. Beate percebeu que o seu lugar era junto aos mais velhos, mas entristeceu-se com isso. Em uma passagem mais adiante, há uma associação do crepúsculo com o envelhecimento e um sentimento de melancolia por isso, ao mesmo tempo em que a protagonista sente falta do filho, que representa a juventude perdida. Certamente, relacionado a esse desejo de retorno à juventude, Beate deseja que Hugo volte a ser como antes, quando os dois compartilhavam segredos e tinham profunda intimidade. Entretanto, o desejo de retorno à origem mais forte em Beate é a vontade inconsciente no sentido de regressar a um estado mais instintivo, do qual ela se afastara para poder ocupar o seu lugar de viúva séria e mãe dedicada na sociedade.

Há em Beate, no decorrer da narrativa, uma transformação e uma tomada de consciência sobre si mesma e sobre os próprios instintos que ficam muito evidentes no terceiro capítulo, em que acontece o desfecho. Ao iniciar o capítulo, o narrador deixa evidente que a protagonista passou de um estado de absoluta treva para a claridade: “quando Beate saiu da escuridão da sombra da floresta, aparecendo a céu aberto, o caminho de saibro estendeu-se a seus pés, ensolaradamente branco e ardente (…)” Esse é o momento em que Beate retorna para casa de um passeio. Ela está prestes a descobrir que cometeu um erro confiando no jovem Fritz, que não saberá guardar segredo sobre o caso amoroso dos dois. Beate, finalmente percebe que não há tanta diferença entre ela e Fortunata, já que sua conduta não condiz com a posição de mulher honrada que ela ocupa na sociedade em que vive. No desespero de ser descoberta pelo filho em sua aventura amorosa com Fritz, Beate começa a conceber um plano que desencadeará o desfecho da obra. 

Apesar de abordar um tema pesado, a obra é belíssima, profunda e rica em significados. É um livro pequeno, leitura para um dia, no máximo dois. Excelente para quem gosta de um bom drama psicológico.

A senhora Beate e seu filho, de Arthur Schnitzler: entre o amor materno e o incesto - Editora L&PM

A Teoria do Romance, de Georg Lukács - Editora 34

A Teoria do Romance, de Georg Lukács - Editora 34
O nosso objetivo hoje é comentar, breve e resumidamente, o livro A teoria do romance, de Georg Lukács. Não se trata de uma análise aprofundada, mas de um texto que visa apenas dar ao leitor uma visão geral e rápida sobre a obra de desse autor. Sabemos que nem todos apreciam uma leitura mais teórica, porém, como a proposta do blog é compartilhar leituras, entendemos que todos os interesses devem ser contemplados. 

Ao iniciar a sua obra, Lukács fala-nos de um tempo em que não havia filosofia, pois todas as explicações eram encontradas nos mitos. Segundo o autor, esse era um tempo sem dúvidas, portanto, sem necessidade de respostas, era a “infância” da humanidade. Esse é o contexto em que surge a epopeia, gênero que reflete plenamente a forma de pensar e de sentir do homem da época. Assim, o mundo grego nos é apresentado de forma homogênea e fechada. Em outras palavras, é perfeito e, portanto, estático, ao contrário do nosso mundo atual que, cada vez mais vasto e rico, perdeu em totalidade o que ganhou em abrangência. Essa é a razão pela qual Lukács afirma a impossibilidade de produzirem-se epopeias nos dias atuais, pois o homem grego vivia no equilíbrio de uma estrutura fechada, que se relaciona com o gênero épico, enquanto o homem atual rompe com essa harmonia e o mundo passa a apresentar-se com uma estrutura incoerente. No universo grego, o homem não conhecia solidão. “Aí não há ainda nenhuma interioridade, pois ainda não há nenhum exterior, nenhuma alteridade para a alma. Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopeia.” O homem atual, ao contrário, é extremamente solitário.


A tragédia conseguiu permanecer intacta em sua essência, embora tenha sofrido algumas mudanças. A epopeia, por outro lado, desapareceu, dando lugar ao romance. O que difere a epopeia do romance é o fato de que este último pertence a uma época em que a totalidade da vida já não é mais evidente. A epopeia apresenta-nos uma totalidade acabada para si mesma, enquanto o romance tenta descobrir essa totalidade. Sara Sefchovich, em sua obra A teoria da literatura de Lukacs mostra-nos o autor como alguém que “vê no homem moderno arrojado fatalmente a alienação e a a fragmentação entre o interno e o externo, entre o sujeito e o objeto, o intelecto e a vida, a essência e a aparência, a forma e o conteúdo, a arte e a ciência.”


A forma romanesca contrapõe-se à infantilidade normativa da epopeia, mostrando uma força amadurecida. O romance compõe-se por uma fusão paradoxal de fatores heterogêneos e descontínuos, tendo sua coerência alcançada por meio da forma. “A mediação entre literatura e vida se faz pela harmonização dos contrários, a unidade do todo superando a contradição das partes ou elementos.”, segundo Maria da Glória Bordini no livro Lukács e a literatura. Enquanto os outros gêneros literários possuem uma forma acabada, no romance, ela é um processo. 


Se a epopeia mostra o homem em perfeita harmonia com seu universo fechado, o romance indica o rompimento dessa consonância. É a ruptura entre o sujeito e seu mundo, o momento em que a totalidade deve ser buscada, em meio a um ambiente fragmentado. Para  Lukács “A epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida.” Assim, o romance é a expressão literária do rompimento da unidade, e ao mesmo tempo é um meio que serve para desvelar e edificar a totalidade oculta da vida.


Lukács destaca quatro momentos nesse gênero. No primeiro, o herói é um visionário que se sente menor que o mundo, solitário. Isso acontece em razão de uma inadequação entre a alma e a obra literária, entre interioridade e aventura. Observa-se assim, um caráter degradado do herói problemático, que mostra uma inaptidão que impede a realização do ideal. A isso Lukács chama de idealismo abstrato, e cita como exemplo a obra D. Quixote, de Cervantes. 


Um segundo momento seria o que o autor denomina romantismo da desilusão, no qual o herói é apresentado como um ser desajustado, em conflito com o mundo. Nesse caso, há uma tendência, por parte do indivíduo, de buscar uma fuga das questões conflituosas e das lutas exteriores. Werther, de Goethe, é o exemplo apresentado por Lukács.


Há, ainda, o que o autor chama de anos de aprendizado. Nesse caso, o herói sofre, entretanto, aprende com as experiências da vida e, por isso, consegue realizar algo de positivo. Lukács chama a esse terceiro tipo, de romance de educação. O indivíduo situa-se entre os dois tipos apresentados anteriormente, abordando a reconciliação do homem problemático com a realidade concreta e social. A Montanha Mágica, de Thomas Mann, serve como exemplo para esse tipo de romance.


No quarto tipo, Lukács cita o russo Tolstoi como sendo o representante maior da epopeia moderna. Essa é a literatura da superação das formas sociais de vida, e o herói atua sobre a sociedade para ajustar-se a ela. Mas essa superação não consegue resolver os problemas inerentes ao homem moderno. Ao contrário, acentua-os, ficando muito longe da realidade sem problemas da épica.


A Teoria do Romance não é um livro indicado para quem busca apenas uma leitura de fruição, pois trata-se de uma obra teórica e bastante densa. Mas para aqueles que anseiam por um maior conhecimento literário em nível teórico, não só recomendo, como garanto que se trata de um livro indispensável.


A Teoria do Romance, de Georg Lukács - Editora 34

A Bolsa Amarela, texto infantil de Lygia Bojunga

 A Bolsa Amarela, texto infantil de Lygia BojungaRaquel é a caçula e única criança na sua família, tendo uma diferença de dez anos em relação aos irmãos. Estes não lhe dão atenção, por acharem que criança “não sabe coisa alguma”. A menina, sentindo-se profundamente solitária e incompreendida, começa a escrever para seus amigos imaginários. Certo dia, ganhou uma bolsa amarela, que veio em um pacote enviado por tia Brunilda. Desde então, a bolsa passou a ser o seu “esconderijo”. Cabia tudo lá dentro, suas invenções, vontades e fantasias. A bolsa amarela, na imaginação da menina, abrigava dois galos, um guarda-chuva-mulher, um alfinete de segurança (todos falantes) e muitos pensamentos e histórias inventadas pela narradora.

Em A Bolsa Amarela, Lygia Bojunga apresenta-nos uma menina vivendo seus conflitos interiores. Ao iniciar o livro, a jovem narradora fala de suas três grandes vontades: crescer, ser menino e escrever. Mas elas não são quaisquer vontades, são daquele tipo que devem ser escondidas, daquelas que não devemos deixar “engordar”. Raquel experimenta o sentimento de inferioridade de quem não pode se expressar como gostaria somente por ter nascido mulher, ou por ainda ser criança. Como não possui maturidade suficiente para processar isso de forma racional, sente vontade de ter nascido homem. A jovem gostaria de ser um menino porque acredita que só os indivíduos do sexo masculino podem fazer tudo o que quiserem, como soltar pipa, por exemplo. Além disso, a menina desejava crescer logo porque “gente grande tá sempre achando que criança tá por fora” (p.26). E o seu terceiro desejo, o de escrever, é a forma encontrada pela garota para organizar o seu caos interior. 


O elemento que serve de título à obra, uma bolsa amarela, representa um dos principais espaços, junto com o quintal da casa onde a menina morou e do qual sente falta,  e a oficina de consertos, uma espécie de Eldorado, onde tudo funciona com perfeição e onde vive  Lorelai (mais uma amiga imaginária). A bolsa amarela é o local onde a menina guarda suas vontades secretas, alguns amigos imaginários e onde vai, aos poucos organizando o seu mundo interior, ou seja, é um espaço psicológico. Em sua infância solitária, a criança substituiu o quintal pelo interior da bolsa. 


A casa dos consertos constitui-se em um espaço imaginário extremamente importante por ser o local onde a menina faz suas grandes descobertas: ser criança é bom, ser menina é bom, os adultos não são maus, não existem tarefas para homens e tarefas para mulheres. Além disso, é um lugar onde se “descosturam” as ideias aprisionadas, como no caso do cão que mordia a todos porque não conseguia pensar em outra coisa. 


Ao lermos A bolsa amarela, logo percebemos que não se trata de um daqueles livros, como muitos do passado e alguns da atualidade, que servem como pretexto para “doutrinar” a criança, mas, ao contrário, valoriza seus problemas, suas dúvidas e a encoraja a pensar por si própria. O galo Rei, amigo imaginário de Raquel, que logo passou a ser chamado de Afonso, representa aquele que resiste à tirania do senso comum, é a iniciação da criança a uma forma questionadora de pensar. Como acontece com os “diferentes”, o galo é perseguido. Mas isso não representa uma “mensagem” negativa para as crianças, ao contrário, elas são incentivadas a serem verdadeiras, como Afonso o é, e como Raquel busca se tornar.


Raquel é a grande heroína da história, consegue resolver seus problemas por si própria, sem a interferência de adultos. Torna-se mais confiante, mais amadurecida e, ao libertar-se de seus “pensamentos costurados”, pode, enfim, deixar partir os amigos imaginários, passando a carregar menos peso e a gozar de uma existência mais leve.


 A Bolsa Amarela, texto infantil de Lygia Bojunga

A montanha mágica, de Thomas Mann - Editora Nova Fronteira

A montanha mágica, de Thomas Mann - Editora Nova Fronteira

A Montanha mágica - Autor: Thomas Mann - Editora Nova Fronteira - Ano: 2005 - Número de páginas: 986 - Skoob



Para ler A montanha Mágica é preciso fôlego de alpinista. 

A Montanha mágica, de Thomas Mann, Editora Nova Fronteira, que narra a história de Hans Castorp, não é propriamente um livro de fácil leitura, pois além de suas 986 páginas, possui um viés bastante filosófico, exigindo um pouco mais do seu leitor. No entanto, da mesma forma que, quando escalamos uma montanha, ao chegarmos no topo, recebemos a recompensa pelo sacrifício da subida, ao concluirmos a leitura desta obra, conseguimos nos sentir plenamente recompensados. 


Hans Castorp é, nas palavras do narrador, um jovem “singelo” que vai de Hamburgo, sua terra natal, ao sanatório de Berghof, na aldeia suíça de Davos-Platz, para visitar o primo Joachim, que se encontra enfermo. A intenção do protagonista é de passar apenas três semanas em companhia do parente, entretanto, ao aproximar-se o final do prazo, o rapaz descobre que também está doente e precisará permanecer internado no sanatório, onde ficará por sete longos anos.

Ao observarmos a estrutura de A montanha mágica percebemos que ela exibe, em sua forma, um espelho da sociedade e do homem atual. O protagonista Hans Castorp representa o indivíduo que vive em um mundo dilacerado, tentando encontrar um sentido para a vida. A obra pode ser entendida como a metáfora de uma sociedade enferma, que busca um equilíbrio social e espiritual, cada vez mais distantes em razão de um progresso e de um amadurecimento intelectual que tornam o homem mais questionador e mais angustiado com as incertezas existenciais. Encontram-se no sanatório de Berghof pessoas doentes de todas as etnias e crenças, compartilhando todo tipo de problemas, infortúnios, inquietudes, amarguras, ilusões e desilusões; mostrando nesse microcosmo o retrato de um mundo aos pedaços. 


O romance divide-se em sete capítulos antecedidos por duas páginas de uma explicação do narrador sobre o “propósito” de contar a história de Hans Castorp. Nessa pequena introdução o narrador explica que a história não deve ao tempo o seu grau de antiguidade, podendo ser bem mais velha do que a sua idade. A história de Hans Castorp não representa propriamente a história de um jovem “singelo”, mas a de toda a humanidade em busca de um sentido para a vida e, assim sendo, é atemporal, ou “mais velha que seus anos”. Os capítulos são marcados numericamente e divididos em subcapítulos. O primeiro narra a chegada do jovem ao sanatório, o encontro com o Joachim e suas primeiras impressões sobre o local. O segundo capítulo é uma grande analepse que mostra a infância do protagonista, e os demais relatam a estada do jovem no sanatório, sendo que as últimas seis páginas, aproximadamente, referem-se à volta de Hans Castorp à “planície”. 


O texto é narrado em terceira pessoa. O narrador comete várias intrusões no decorrer da história, fazendo comentários e dando suas opiniões. Além disso, ele demonstra possuir conhecimento sobre os pensamentos e os sentimentos do jovem protagonista e de seu primo, até mesmo quando os dois não falam sobre isso. 

O narrador permanece com esse distanciamento durante toda a narrativa, entretanto, no final, demonstra sentimentos de afeição por Hans Castorp e, ao mencionar o gesto de levar a mão ao olho para enxugar uma lágrima ao lembrar do “jovem singelo”, apresenta-nos a possibilidade de tratar-se do escritor humanista Settembrini, um dos personagens do livro. Nesse caso, o narrador deixaria de ser alguém de fora da narrativa para tornar-se uma testemunha dos fatos narrados. 


O tempo é de extrema importância em A montanha mágica. O homem da atualidade, que já superou a idade mítica da epopeia, angustia-se profundamente com as questões relativas à passagem do tempo, pois ela representa a proximidade da morte. “Sim, o tempo é um enigma singular, difícil de resolver.” (p.195)  
O romance é narrado “quase” todo em ordem cronológica. Quando se diz “quase” é porque, excetuando o segundo capítulo, que conta a infância de Hans Castorp, há poucas analepses e nenhuma prolepse. As raras voltas ao passado acontecem quando o protagonista recorda-se de fatos de sua infância, como a ocasião em que pediu o lápis emprestado a Pribislav Hippe, ou nos momentos em que o narrador conta a vida de Settembrini ou de Naphta. Salvo essas passagens, a história inicia com a chegada do jovem Hans ao sanatório, conta todas as transformações pelas quais ele passa em sua estada por lá e termina com sua volta à planície. A obra transcorre de forma a dar-nos a impressão de uma perda da noção do tempo. 

O tempo passa lentamente, arrastando-se, fazendo com que todos os dias sejam iguais uns aos outros. Essa passagem é marcada por “chegara o solstício de verão” (p.502), ou “o ano em breve completaria o giro (…)” (p.503), ou “E certa vez experimentou uma breve, mas violente vertigem ao recordar-se de que a aquilégia estava novamente em flor e o ano se fechava sobre si mesmo” (p.532). No início, o leitor pode ir acompanhando o tempo de permanência de Hans Castorp no sanatório, mas no decorrer da narrativa isso já não é mais possível. Somente no final do romance é que tomamos conhecimento de que, afinal, o jovem esteve na montanha por sete anos. Foi possível observar que as transformações ocorridas na natureza para marcar a passagem do tempo, afetam o espaço na obra, pois uma mesma paisagem que, em determinados momentos, está florida, em outros, está coberta de neve, fazendo com que, mesmo quando não conseguimos mais saber o tempo exato de permanência do protagonista no sanatório, percebamos que os anos estão passando. 

O espaço é fundamental para marcar o que se passa no interior do personagem. Há muitas mudanças inesperadas de temperatura que remetem a um momento existencial em que não há certezas nem ordem, somente indefinições. Ou, ainda, uma paisagem primaveril no verão apontando para uma transformação que levará a um novo recomeço. Em certas passagens em que a natureza mostra-se solitária e monótona podemos perceber o jovem Hans Castorp voltando-se para sua existência interior. 

Há a passagem em que Hans Castorp, interessado por um bosque, termina por escorregar em um abismo, tendo que despender bastante energia para conseguir voltar ao alto. Essa aventura reporta-nos ao aprendizado de Hans Castorp sobre si mesmo, pois a volta para o alto, após descer ao abismo, pode ser vista como a metáfora de elementos inconscientes do personagem que são trazidos à luz da consciência. Entretanto, se os espaços naturais são importantes por mostrarem a individualidade do protagonista e sua relação consigo mesmo, o espaço do sanatório não é menos significativo, pois é justamente esse que representa a sociedade e, é através dele que podemos constatar as críticas sociais presentes na obra. É aí que Hans Castorp se relaciona com as mais variadas pessoas e entra em contato com todo tipo humano possível, com as mais diversas ideias e filosofias. É onde conhece o “pedagogo” Settembrini e onde se apaixona por Madame Chaucha. É nesse espaço que, ao mesmo tempo em que sua doença progride, o jovem torna-se mais humano, deixando de lado a vida anterior, na qual sua única preocupação era consigo próprio, passando a interessar-se por questões de natureza mais universal sobre o sentido da existência.


Assim, o jovem protagonista, que antes não conseguia enxergar além da imagem aparente das coisas, como no caso do retrato do avô, que ele tomava como se fosse a imagem real do velho, agora consegue ver a realidade tal como ela é. É dessa forma que, aos poucos Hans Castorp vai tornando-se um outro ser, na medida em que o tempo passa. 


Essa nova visão de mundo faz com que o “filho enfermiço da vida” rompa com a planície. Há um determinado momento em que percebemos que Castorp parece não fazer mais questão de voltar. Então, Joachim, seu último elo com a planície parte “em falso”, marcando de vez esse rompimento. O jovem protagonista desistiu da planície. Mas, se essa partida assinala a desistência de Hans, a visita rápida e a partida ainda mais rápida de seu tio James sinaliza o momento em que planície desistiu dele. 


Mas, afinal, em seus anos de aprendizagem, o herói entende que não é possível modificar a condição humana, mas tentar se adaptar a ela de forma positiva e construtiva. Após sete anos, e após comer por aproximadamente um ano em cada uma das sete mesas do refeitório, fechando um ciclo e mais um círculo do movimento existencial de Hans Castorp, o filho enfermiço está pronto para voltar, finalmente, à planície e à vida. 



A montanha mágica, de Thomas Mann - Editora Nova Fronteira